Quando a câmara, no plano inicial, desliza sobre o Sena até à marginal, captando para sempre os parisienses que apanham sol sob as pontes da cidade, sabemos que nada vai ser como se mostra naquele momento, banal e quotidiano.
Depois da realidade tudo se vai desmoronar, escoar-se como areia por entre os dedos, um lento desvanecimento marcado pelo ritmo das ondas assolando a praia, uma violência surda que é mais forte à noite, quando tudo dorme. E é à noite que surge a aparição de Marie, contra o negro, como se fosse ela o fantasma que habita o filme, e não Jean. Talvez este seja o motor que dirige todos os seus movimentos, toda a negação perante o absurdo de um corte que não é bem corte, é ferida superficial sangrando, um sofrimento constante que desgasta o corpo e nega a continuação da vida, que não permite que o luto se faça de maneira definitiva. Meses depois acordamos no meio de um dia, e descobrimo-nos perdidos no filme, imersos no lento e subtil deslizar para a loucura. As ondas, são as da praia onde tudo aconteceu, onde Jean desaparece para sempre (?), e são as ondas de Virginia Woolf, as ondas que marcam o compasso musical da vida, a formação, o culminar e o abatimento da água sobre a areia. A mesma Virginia Woolf que morre afogada, de maneira a que Vincent, o possível elo de religação ao presente de Marie, chama horrível, mas que para ela encerra uma beleza serena. A morbidez de Marie transforma-se depois numa imitação de necrofilia, quando ela se masturba pensando em Jean, e no seu duplo momentâneo e concorrente, Vincent. No fundo, todo o amor é egoísta, e o sexo será a prova dessa evidência. Mesmo na cama que Marie e Vincent partilham, Jean continua a existir, confirmando que é impossível apagar a marca deixada pela intimidade, pelos gestos ao longo de tantos anos partilhados, gestos que são repetição, mesmo tédio, mas que ganham outra força quando desaparecem, como se dissessem que é preferível o tédio ao vazio, à ausência de tudo.
Ao longo do filme pequenos sinais vão sendo semeados por Ozon para a reconstituição de um corpo, fílmico e humano: a manteiga a barrar a torrada, o despertador para a manhã seguinte, a luz apagada depois de o livro estar pousado. E são estes sinais que constroem a intimidade, presente para além da ausência de amantes. É uma intimidade britânica, como no filme de Patrice Chereau, adaptado de um romance de um inglês, Hanif Kureishi. E é também uma intimidade que faz a ponte com a obra de Virginia Woolf, directa e indirectamente citada por Ozon. O rosto de Charlotte Rampling é a imagem “woolfiana” que se destaca, surge da neblina e atravessa a tela como um espectro que se esqueceu de esquecer. Ela procura manter-se durante o filme à tona da água, e a água é aqui a fronteira, a “ténue linha vermelha” que separa a memória do esquecimento, a razão da loucura. Rampling é também a figura pré-rafaelita que Virginia Woolf personificava, ou uma resposta à mrs. Dalloway que se tenta lembrar do que perdeu; Marie procura esquecer o que lhe foi arrancado, para voltar a mergulhar no quotidiano, sinónimo de esquecimento. O enigma final prolonga o mistério, que é sempre duplo; será que Jean morreu? A certeza transparece para além de qualquer dúvida, mas Ozon insiste na continuação do jogo, até ao plano final: quem é o fantasma, Jean ou Marie, o morto ou quem escolheu morrer?
[Sérgio Lavos]
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