O que não tinha notado quando vi a anterior obra de Allen fora a ironia predadora que não se importava de pegar num mito em forma de livro (Crime e Castigo) e conferir-lhe um tom de fábula moderna. O modo ridiculamente acidental como Scarlett Joahnsson leva um tiro, no vão de uma escada, é apenas o culminar da mal-disfarçada sátira. Woody Allen brinca com a seriedade e com a tendência para o drama, características tipicamente britânicas, ou pelo menos vistas pelo prisma do lugar-comum como sendo tipicamente britânicas, sem nunca revelar abertamente a farsa. Há chaves no filme, claro, desde a visita da americana leviana em pleno countryside inglês (terreno fértil para a ficção desde, pelo menos, Henry James) até ao fascínio quase infantil que Allen sente pela paisagem urbana inglesa, com os seus tons de cinzento e a chuva intermitente, o seu cosmopolitismo educado que contrasta de modo evidente com o caos multicultural de Nova Iorque.
Woody Allen apaixonou-se por Londres, mas não consegue sacrificar a sua verve a uma boa paixão passageira. Em Scoop, prova-se. Um regresso à comédia e o Dr. Jekill para o Mr. Hide que foi Match Point. A sátira aprimora-se, e as linhas de continuidade entre as duas obras ainda acabam por acentuar o carácter irónico de Match Point. Aqui, o assassino é desastrado, descontrolado, um arrivista que usa a sorte que tem (a bola na rede é, sem dúvida, a metáfora que explica melhor o filme e que rima directamente com a moeda sobre o rio e o acaso que não deixa que ninguém suba as escadas durante aqueles cinco minutos em que são cometidos os dois crimes) para ascender na escala social. Em Scoop, o milionário com aspirações políticas, frio e calculista no crime que comete, é derrotado pela incongruente jornalista e pelo clown decadente, ajudados pelo destino e pela divina providência, encarnada na figura do jornalista que regressa do rio do esquecimento. Tudo improbabilidades, claro, mas não será disso que trata o cinema?
[Sérgio Lavos]
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