30/01/07

A realidade, agora a cores

Escrevo aqui e quem me conhece sabe que sou eu que falo, quem não me conhece imagina alguém que escreve que não tem nunca nada que ver com aquilo que realmente sou. Sou lá fora e nunca ninguém realmente sabe quem eu sou, apenas os que me estão mais próximos se aproximam da personagem que escolhi ser - o contrário de representar. Quem me lê apenas pode acreditar nas minhas palavras, não na verdade que elas transmitem. A verosimelhança é um recurso simples de imitar, mesmo quando escrevemos a verdade. Ser intimista é, de algum modo, disfarçar o que sentimos confiando ao leitor a chave da casa errada. A ficção tem desculpa quando é escrita, é um crime quando é vivida. Lembro-me da história contada de por Emanuélle Carrére em "O Adversário"; um homem que finge durante anos a fio uma vida perante a família. A repetição do ritual diário de ser. Baseado numa história verdadeira, como anunciam por vezes os filmes americanos. A repetição do ritual diário de existir. Nunca poderemos obter o perdão que desejamos para os nossos pecados privados. Mas poderemos nós exigir o perdão para os nossos pecados públicos? Ou inventar uma personagem que desculpe as fraquezas da nossa vida privada? Escrevo isto sabendo que não me acreditam, depois de ter lido uma entrada do Henrique no blogue Insónia (sigam os links), depois de ter seguido o percurso de um rumor, um boato, uma terrível história inventada. Escrevo sem ter a certeza se a trama foi resolvida, sem saber se algum novo capítulo se acrescentará à história. Um dos actores da sórdida novela é alguém que habituei a respeitar por razões que diferem da realidade. Paulo José Miranda é, para mim, o escritor que gostei de ler em tempos, não a voluntária ou involuntária personagem de uma história que apenas podia ter acontecido neste admirável mundo novo em que vivemos. Ou já não é. Tornou-se um nome referido no cast final de um filme, um desconhecido. O que a literatura me tinha oferecido a ficção rasca da realidade agora me tirou. Não sinto saudades do que perdi.
Aprendemos a confiar em impulsos electrónicos, pixels, palavras num ecrã. Criamos personagens, enredo, incluímo-nos na história. Não pode haver qualquer mágoa, arrependimento, neste facto.

[Sérgio Lavos]

26/01/07

Entrada de diário (2)

Enquanto tentava tomar a decisão mais importante da minha vida, descobria que as frágeis fundações do meu mundo se tinham desmaterializado. A insónia surgiu como uma constante do universo e perdeu a natureza causal que lhe tinha sido até aí intrínseca. Era a adolescência.
E o meu interesse, imagine-se, eram as ciências exactas. A certeza, o esforço até chegar a um resultado, o método experimental, perfeito porque incluía na sua sequência o erro e o falhanço, além de qualquer dúvida. Décadas mergulhado no vício das letras conduziram-me a uma conclusão, desgraçadamente - não consigo acertar com o tom do discurso: apenas existe verdadeira poesia num teorema.
Tudo o resto: dúvidas, preocupações, ingenuidades congénitas.
Mas enquanto era afrontado pela idade maldita do Homem - e afirmo isto com um sorriso melancólico nos lábios - tive de decidir, e talvez tenha errado. Nunca poderei ter a confirmação da suspeita, inevitável consequência do hábito de relativizar a importância das equações e do método.
A minha indisciplina nasceu na infância mas fundamentou-se na adolescência. O esforço de contrariar a incerteza levou a que o meu gosto literário se construa a partir da terminologia científica. E nenhuma das famílias de onde ele descende se pode orgulhar de ter o sangue puro. Abastardo as duas áreas do conhecimento sem nunca as dominar minimamente. Apenas o meu gosto legitima a operação.
Apenas o trágico consegue verdadeiramente ser cómico. Se nos levarmos muito a sério, acabamos por acessórios à nossa própria existência. Redundantes. Desnecessários.
Talvez tenha chegado a esta conclusão demasiado tarde, e por isso as palavras carregam o peso da tragicomédia rasca, ao ritmo de uma vida pós-moderna demasiado acabrunhada e afogada na corrente perpétua de informação, onde qualquer tempo mais lento que aquele que um bom computador pessoal permite acaba por ser um acto temerário destinado ao fracasso.
As noites que não dormi aos treze anos, recupero-as agora. Quando tudo o que eu desejava era o espanto da insónia.

[Sérgio Lavos]

25/01/07

Videografias 7

Jonathan Dayton e Valerie Faris realizaram diversos vídeos, principlamente, para Red Hot Chili Peppers, The Smashing Pumpkins, R.E.M., Travis mas só se tornam numa dupla aclamada quando, em 2006, realizaram a sua primeira longa-metragem, o fantástico filme sobre uma estranha família, Little Miss Sunshine. Com os Travis, fizeram os videos Sing e Side para o álbum de 2001, The Invisible Band e, é precisamente Side o video em questão: homenagem explícita ao filme de Steven Spielberg, Close Encounters of the Third Kind (1977 - há três décadas!muito antes da histeria à volta de XFiles) onde François Truffaut é um investigador científico dos fenómenos de raptos e desaparecimentos por forças alienígenas. Com este filme, a imagem tradicional de OVNIS como simples pratos voadores foi substituída, de vez, por naves luminosas. Este vídeo tem os fenómenos todos: fanáticos caçadores de imagens de objectos voadores não identificados, extraterrestres, círculos no solo, abduções, encontros imediatos do terceiro grau e ainda um contacto musical entre a banda escocesa e os extraterrestres.
[Susana Viegas]

19/01/07

Publicidade em casa própria

Hoje foi o dia da minha entrevista ao Miniscente.

[Sérgio Lavos]

Scoop

Havia qualquer coisa que me escapara quando, há cerca de um ano, me desiludi com Match Point, de Woody Allen. Não seria a construção de um olhar estrangeiro, perfeito na sua estranheza cínica que não se importava de enumerar clichés e citá-los com a graça e a sabedoria de quem já nada tem a provar ao mundo. Também não poderia ser a ausência de punchlines. A atitude deliberada terá sido um risco, mas o registo mais pesado de Woody Allen não deixava de ser eficaz em quase todos os aspectos. Terá havido um erro de casting ao ser escolhido um actor com uma figura pouco masculina, Johnathan Rhys-Meyers, para encarnar o jovem oportunista tornado assassino por interesse. Não cabe nestas considerações o desempenho de Scarlett Johansson; cada vez mais me convenço de que qualquer papel se lhe adequa, e prova-o Scoop, onde ela veste a pele de uma personagem a milhas de distância da sedutora despeitada de Match Point, apenas para nos ficarmos pela outra colaboração com Allen.

O que não tinha notado quando vi a anterior obra de Allen fora a ironia predadora que não se importava de pegar num mito em forma de livro (Crime e Castigo) e conferir-lhe um tom de fábula moderna. O modo ridiculamente acidental como Scarlett Joahnsson leva um tiro, no vão de uma escada, é apenas o culminar da mal-disfarçada sátira. Woody Allen brinca com a seriedade e com a tendência para o drama, características tipicamente britânicas, ou pelo menos vistas pelo prisma do lugar-comum como sendo tipicamente britânicas, sem nunca revelar abertamente a farsa. Há chaves no filme, claro, desde a visita da americana leviana em pleno countryside inglês (terreno fértil para a ficção desde, pelo menos, Henry James) até ao fascínio quase infantil que Allen sente pela paisagem urbana inglesa, com os seus tons de cinzento e a chuva intermitente, o seu cosmopolitismo educado que contrasta de modo evidente com o caos multicultural de Nova Iorque.

Woody Allen apaixonou-se por Londres, mas não consegue sacrificar a sua verve a uma boa paixão passageira. Em Scoop, prova-se. Um regresso à comédia e o Dr. Jekill para o Mr. Hide que foi Match Point. A sátira aprimora-se, e as linhas de continuidade entre as duas obras ainda acabam por acentuar o carácter irónico de Match Point. Aqui, o assassino é desastrado, descontrolado, um arrivista que usa a sorte que tem (a bola na rede é, sem dúvida, a metáfora que explica melhor o filme e que rima directamente com a moeda sobre o rio e o acaso que não deixa que ninguém suba as escadas durante aqueles cinco minutos em que são cometidos os dois crimes) para ascender na escala social. Em Scoop, o milionário com aspirações políticas, frio e calculista no crime que comete, é derrotado pela incongruente jornalista e pelo clown decadente, ajudados pelo destino e pela divina providência, encarnada na figura do jornalista que regressa do rio do esquecimento. Tudo improbabilidades, claro, mas não será disso que trata o cinema?

Jogo de acasos que apenas se afirmam como tal depois de acontecerem, a vida nunca imita o cinema, que está, por princípio natural, escrito à partida. Aos setenta anos, Allen pode mostrar cansaço e desencanto, mas conseguiu apurar a sua inteligência cinematográfica a um extremo que, roubando espaço à novidade e à surpresa, conquista território em termos de depuração formal e técnica. Que a sorte continue a bafejar quem gosta de Woody Allen, de modo a que continuemos a provar a colheita anual a que estamos habituados.

[Sérgio Lavos]

17/01/07

Field trial

Esquece as árvores,
procura a floresta, o seu desenho.

Esquece os mortos,
assinala no mapa a flutuação epidemiológica.

Esquece os vivos,
procura a curva no écran, apenas.

Esquece o mortal vestígio.
Esquece a singular reiteração da vida.

Estamos dentro de uma ampola,
somos cientistas, desinfectos cientistas, meu caro.

Luís Quintais, in Canto Onde, ed. Cotovia.

[Sérgio Lavos]

Notas várias

1. O erro crasso - ortográfico - que aparecia na última entrada já foi corrigido. O outro erro, mais vulgar, mantém-se; há coisas que são incorrigíveis. (Frase sem medo de ser entendida apenas por quem a escreveu).
2. Lembrei-me de quem era a ideia da escrita enquanto jogging. O título de um livro, edição brasileira horrível, mais exactamente "Jogging para escribas". Um daqueles manuais para a aprendizagem da escrita, com exercícios e assim, esse tipo de treta. Pensando bem (imagine-se aqui um balão daqueles que se usam na BD), o sentido do título do livro é o contrário daquele que eu pretendi atribuir à expressão "jogging nocturno". O acto de escrever como exercício para preencher as noites. Nada que ver com a inutilidade do treino do ofício de escrever. Nenhum esforço produz génios. Mas ajuda, isso ajuda, a convencer os medianos da sua suposta genialidade.
3. O mais importante: maradona lê (está a ler, já leu, vai ler) Sebald. O que um homem faz para ser desacreditado em público.

[Sérgio Lavos]

16/01/07

Entrada de diário

Se há característica que seja comum à maior parte dos bloggers é a tendência para escrever tarde, preenchendo a insónia. Outra ainda é a vontade de repartir a solidão, mesmo que esta não seja forçada, antes procurada. Outra característica ainda é repetir chavões sobre a vida de pessoas de quem não conhece pívia, adivinhar os que os outros fazem, tomar a parte pelo todo, achar que os hábitos não são, sempre, sempre, únicos e intransmissíveis - ao contrário da pretensão e da doença da inveja.
Não confesso nada a tais horas. Gosto de dormir - não é pecado - mas não gosto de adormecer cedo. Antes levantar tarde. Mas nunca fui, na realidade, boémio; apesar de ter tentado. Escrevo num estado sem assombro. Nada é fácil. Quando tenho obrigações, coisas a cumprir, dedico-me à passividade da escrita. Se é obrigação, é actividade. E nada tem que ver com exercício físico, apesar de também não entender a função do jogging. Apesar de, sem horror, conseguir imaginar a escrita como um jogging. Não sei quem disse - outro defeito, péssima memória para citações. Jogging nocturno.
O confessionalismo é uma doença, uma fraqueza. No entanto, reparo, quase que aposto que ninguém sabe nada da minha vida. Nem do que sou. Pratico a bela arte da mentira, finjo a vida, não há flutuação de humor que aqui não caiba. O intimismo é uma fraude.
Mas a ficção não. A melhor ficção é a quem tem a forma de diário. Há mais verdade n'O Processo do que nos cadernos pacientemente escritos por Kafka ao longo da sua vida. Consigo encontrar pouca sinceridade no Livro do Desassossego de Bernardo Soares - criação, criação, pura criação. Sobra, no entanto, em toda a sua poesia. Há, mas não se pense que prefiro a verdade à mentira. Se o intimismo é fraude, o confessionalismo é a pior fraqueza. Invente-se uma vida, a verdadeira há muito que deixou de ter conserto.
Não há insónia. Apenas tempo até cair no sono.

[Sérgio Lavos]

13/01/07

Grandes frases de abertura (1)

Não há mais que um conjunto de letras nesta página. E tu és um visitante que acabou de chegar de um país distante e estrangeiro.

[Sérgio Lavos]

Um pretexto

"Não preciso de mais realidade na minha vida", teclou ele, depois de ter carregado a arma.

[Sérgio Lavos]

Quoting

Como um verso de João Miguel Fernandes Jorge (mas posso não estar certo na adequação dos termos): entre tenção e tensão, fabrico um simulacro de amor diurno. De noite, nem sempre durmo.

[Sérgio Lavos]

Traições

Usava de um extremo cuidado com os vocábulos. Tinha sido em tempos avisado dos seus modos matreiros. Certo dia, palavra houve que surgiu no sítio indevido e que, vingando-se do sucedido, o atraiçoou à hora errada da noite. Emboscou-o num sonho. E quando acordou, esquecera-se já de tudo.

[Sérgio Lavos]

12/01/07

Público

Cada vez mais me convenço de que a televisão consegue evidenciar o pior de quem, por sorte ou azar, lá aparece. O olhar embevecido de Judite de Sousa ao entrevistar Ricardo Araújo Pereira na "Ainda Maior Entrevista", ou coisa que o valha, e a sensação de que este esteve quase todo o tempo a controlar-se para não desatar a gozar com a entrevistadora - e, já agora, consigo próprio a ser entrevistado - confirmam a desconfiança. Há quem apenas exista aparecendo; mas quem existe antes de aparecer dispensaria a exposição pública sem hesitar. O que apenas mostra que tipo de criaturas conseguem ser os políticos.

[Sérgio Lavos]

11/01/07

A desculpa

Depois de ler este excelente texto de Eduardo Nogueira Pinto, fico a pensar seriamente que, de facto, se consegue escrever muito melhor nos blogues do que nos jornais. O texto de Rui Ramos é, a vários títulos, deplorável em termos de honestidade intelectual e, provavelmente, não mereceria a descontrução certeira de que foi alvo. Demasiado trabalho para tão pouco.

[Sérgio Lavos]

10/01/07

A ceifeira

É quase sempre difícil distinguir o autor da obra. Não se lê desconhecendo completamente a biografia do autor e é quase inevitável que a leitura do texto seja condicionada pelo conhecimento que temos da vida de quem escreve.

A biografia não passa de uma sequência de datas e acontecimentos. Separo as duas noções porque raramente coincidem. O autor nasce, vive (e casa-se ou não, morre-lhe alguém ou não, completa o curso superior ou não); e morre. Mas se falamos de acontecimentos, falamos de outra coisa. Da obra. Por alguém morrer, o autor mergulha na depressão e muda completamente o seu estilo. Cresceu na sombra de uma mãe protectora: escreverá de determinado modo. A História sofre convulsões que lhe dificultam a vida: o autor contraria a História e cria contra ela.

Falando de biografia: os autores que morrem novos são sempre lamentados a dobrar. Porque a empatia gerada com o leitor simula uma familiariedade postiça, o leitor chora o autor que morre como se fosse um dos seus. Porque o autor desaparece demasiado cedo, cisma-se na obra que ficou por criar, sonha-se com uma arca cheia de inéditos que possam alimentar a fome que se segue ao desaparecimento, inventariam-se conjecturas sobre o rumo que a obra por criar poderia ter tomado.

O leitor precisa destas consolações na sua relação com os autores de quem gosta. Não aprecia o rigor do académico, capaz de analisar friamente a obra desligada da vida. A biografia não é apenas um conjunto de circunstâncias sem relação com os livros. Acabe-se com as datas; obtém-se o chão onde a obra germina, o intervalo no tempo delimitando a marca do escritor na terra.

Não carecemos de adivinhações sobre obras inacabadas. Mas não podemos recusar o apelo da intimidade forçada. Ao ler um livro, convidamos para junto de nós quem o escreve. Esperando que o arrependimento não surja. Mais do que podemos desejar na relação com os outros. Vantagens de uma existência de papel.

[Sérgio Lavos]

Lugar-comum

Pode-se ser amável ou prático. Compreensivo ou autoritário. Conciliador ou conflituoso. Nunca cada um dos pares ao mesmo tempo.

Mas também se pode ser o conjunto destas características, não sendo a soma de todas. A decisão não significa imprudência. A indecisão pode determinar o andamento da vida, impondo-lhe ritmos soluçados, adiando obrigações e prolongando a ansiedade da espera.

Nada disto se pode aplicar com propriedade às relações humanas. E nunca ao amor, que é a concretização plena da aleatoriedade que governa as partículas elementares que compõem o Homem.

Pode-se decidir que personalidade se quer impor ao mundo. Nunca a que o mundo nos quer impor de volta.

[Sérgio Lavos]

08/01/07

Ruy Castro

Dos grandes livros que não li em 2006, queria chamar atenção para Rio de Janeiro - Carnaval no Fogo, de Ruy Castro. Poderia escrever que é um fabuloso fresco sobre a "cidade maravilhosa", uma crónica fantástica de um excelente prosador em volta da História e do povo de uma das maiores metrópoles do mundo, e por aí fora. Várias foram as vezes em que folheei o livro, ora lendo as primeiras frases, ora saltando mais para diante, de nome em nome, personalidades brasileiras, amigos do autor, gente anónima. Demorei-me mais nos relatos de índole pessoal; sei que a alma de uma cidade apenas se evidencia quando o autor fala da sua própria vida e os ilustres visitantes que ele convoca se calam. Da série "O Escritor e a Cidade" tinha lido o livro sobre Praga e pareceu-me um pão ázimo, sem humor e demasiado circunscrito a um academismo bacoco, tão prezado pelo auto-proclamado cultor da língua inglesa que é John Banville. O livro de Ruy Castro fugia a esse estilo, mas por intuição ou pura sorte, não o cheguei a ler; para dizer a verdade, o gancho que nos prende aos grandes livros não se soltou das páginas que lia.
Ah, mas dizia que queria falar de um livro que não li, e não é exercício inédito. Em mim, pelo menos. Quantas vezes me canso de um livro antes de iniciar a leitura, derreado pelo excesso de marketing a que as editoras sujeitam os pobres dos autores. Lembro-me agora, à laia de exemplo, de Rosa Montero e a da sua ubiquidade por alturas de Novembro: não houve suplemento literário a que ela não prestasse provas - de originalidade, de excelente conversadora e ainda melhor publicitária. O benfazejo calvário culminou na inefável Ana Sousa Dias, ou coisa que o valha, e está tudo dito. Resultado: recusei (com algum desprezo snobe, admito) pegar num livro que fosse da senhora.
Apenas um exemplo. A verdade é que a sobredose de elogios que a obra de Ruy Castro recebeu teve em mim efeitos secundários de natureza higiénica. Não li e estou a falar. Não irei ler e continuarei a gostar de literatura brasileira. Não vou em patriotismos retintados mas não poderei nunca deixar de agradecer a Ivan Nunes o seu conselho em jeito de confirmação. Há quem se excepcione. A unanimidade pode provocar uma saudável alergia. Não lerei.

[Sérgio Lavos]

eXistenZ

Depois de pesquisar avidamente alguns blogues da barra de links em busca de uma entrada que li há semanas a propósito de Uma História de Violência onde era referido de passagem eXistenZ num tom que não se importava de escapar ao unanimismo em torno de Cronenberg, avanço para o texto. Interessava-me a citação porque, revisto o filme em DVD, não poderia concordar mais com o autor da opinião. Mas, não localizando o texto, não poderei dissertar sobre a influência que as opiniões dos outros podem ter no nosso julgamento. Enquanto via o filme, mais me ia apercebendo das fraquezas, e mais se ia firmando a certeza de concordar com a opinião alheia (e, de momento, apócrifa). Reconheço que cheguei ao final sem perceber até que ponto o meu julgamento não foi condicionado pelo preconceito inicial. Retenho do primeiro visionamento uma impressão de desilusão; agravada pelo deslumbramento que Crash me provocou, plenitude de um filmografia desconcertante e fabulosa. Desde Videodrome até Naked Lunch, passando pelo meu favorito Irmãos Inseparáveis (não esquecendo o injustamente subestimado M. Butterfly).
Reafirmo então, mais seguro: eXistenZ é, sem dúvida, de entre aqueles que eu vi, o filme mais fraco de David Cronenberg. As obsessões de sempre transformadas em joguinho de reflexão rasa e sem nervo, um filme como uma cebola que se descasca camada após camada até já nada restar, o vazio. Mas gostei da pistola de ossos que dispara dentes. E dos animais mutantes da fábrica replicando ionis expostas. E do orifício onde entra no cordão umbilical - as óbvias, e ainda assim, divertidas, alusões a impulsos sexuais duvidosos. Há sempre qualquer coisa que salva os filmes daqueles de quem gostamos.

[Sérgio Lavos]

Da esquerda

Entre Maradona e Pelé, Futre e Figo, Federer e Sampras, Stoichkov e Romário, sempre o primeiro do par. O grau de imprevisibilidade dos canhotos aplicado à ideologia. Lições enviesadas desse perigoso esquerdista, Slavoj Žižek (ler).

[Sérgio Lavos]

07/01/07

Ética do contexto (2)

Não li, até agora, nenhum texto que questionasse seriamente as opções tomadas pela maior parte das estações de televisão do mundo ocidental, ao decidirem mostrar as imagens, captadas por um telemóvel, da execução de Saddam Hussein.

Apesar de haver notícias de terem sido presos dois guardas que estavam presentes, suspeitos de terem filmado o acto, ninguém de boa fé poderá achar que a gravação não foi permitida, se não mesmo incentivada, pelas autoridades iraquianas. A cortina de fumo da detenção dos guardas não desmente a verdade do acontecimento: a encenação do enforcamento serviu apenas para humilhar os sunitas. A imagem é o motor de afirmação do novo poder no Iraque; o governo xiita imita, a uma escala mediática global, o acto simbólico que foi mostrar o corpo de Mussolini e de sua amante, fuzilados numa praça de Milão e ao longo de vários dias expostos à execração pública. Cada tempo tem a sua forma particular de linchamento.

As imagens existiam, o governo iraquiano tinha todo o interesse em transmiti-las em território nacional, interesse que se estendia ao resto do mundo muçulmano, as forças ocupantes também – sem hipocrisia, ou será que não existe um fio narrativo que liga a captação das imagens de Saddam a sair de um buraco e o acto final, do ex-ditador com a corda ao pescoço, enfrentando os algozes de rosto descoberto?

Depois da morte de três crianças em consequência da exibição das imagens, tem-se evitado colocar em causa a independência de quem decidiu que a matéria tratada – a morte de um ser humano, recorde-se – teria importância noticiosa suficiente para não ser objecto do pudor que em outras alturas foi visível. Recorde-se a censura pública do governo americano aos media árabes quando mostraram os cadáveres de soldados americanos a serem arrastados e queimados em Tikrit, e isto foi apenas um exemplo. Em Portugal, apenas a SIC se absteve de mostrar o momento anterior à execução, e tanto a RTP como a TVI pararam antes de surgir a gravação não-oficial, que mais tarde acabou por circular pela Internet. De qualquer modo, todos os canais portugueses já passaram, disfarçados em reportagens sobre as reacções à morte de Saddam, breves segundos da versão oficiosa, com os insultos e o momento da morte incluídos, sem qualquer aviso prévio nem explicações da mudança de critério.

Do que tenho lido, destaca-se o nojo de muitos comentadores perante a humanidade exposta de Saddam. Eu também preferia, confesso, que ele tivesse continuado a ser apenas um monstro semelhante àqueles que assombram os nossos pesadelos de criança. Ficaria menos perplexo se me tivesse sido ocultada a pornografia barata dos executores do ditador. Entre os dois níveis de repulsa – o que recusa em qualquer situação a pena de morte e aquele que apenas sente aviltamento quando exposto ao lado sombrio da personalidade humana – balançam as opiniões da maior parte dos europeus – dos americanos, não vale a pena falar, conhecendo nós o apoio que tal medida punitiva continua a ter na opinião pública local. Mas, e será esta a questão verdadeiramente importante, até que ponto o nojo é sentido? Onde pára a imaginação humana? No ponto em que as câmaras de telemóvel não conseguem captar a morte de um Homem?

[Sérgio Lavos]

Escolhas

Louvado seja o RTP Memória, capaz de passar um Benfica-Rio Ave de 1993, o Duarte e Companhia dos bons tempos do canal público e preencher um serão familiar de sexta à noite com uma coboiada das antigas, um John Ford perfeito, A Paixão dos Fortes. Sintomático é o facto de os 4 canais que transmitem em sinal aberto terem uma programação pior que um canal saudosista emitindo a maior parte do tempo a preto e branco. Até o volume do sinal, mais baixo do que os outros, é significativo. Entre os berros da TVI e o silêncio de um plano do céu criado por Ford, um mundo de distância.

[Sérgio Lavos]

05/01/07

Ética do contexto

Dos textos lidos na última semana a propósito da morte de Saddam Hussein destaca-se, de longe, este de Ivan Nunes no Cinco Dias.
Não existem opções alternativas quando se pensa na pena de morte. Ou se está contra, sempre, ou se aceita sempre, de acordo com o julgamento a que o condenado é sujeito. O extraordinário equilibrista que é Pacheco Pereira consegue, contudo, aguentar-se na corda para onde subiu há quase 4 anos atrás, quando apoiou sem reservas a invasão do Iraque. Admira-se a pirotecnia das palavras no seu artigo de ontem no Público, mas facilmente também se adivinha o mal-estar provocado pela quantidade de ziguezagues a que o pensamento único do comentador tem sido sujeito.
Não há acusação aos humanistas que disfarce a brutalidade das imagens do enforcamento do ditador. As boas consciências ocidentais dispensariam alegremente a realidade crua da morte em directo, mas, para o bem e para o mal, a democracia mediatizada (que é, de resto, tão meticulosamente dissecada por Pacheco Pereira em muitos dos seus textos) transporta-nos a novos reinos do conhecimento de forma irremediável. Entre os contrastes marcados e as contradições profundas, o mundo globalizado ameaça transformar-se num simulacro de si próprio, tão distante de qualquer verdade que se torna quase impossível sobreviver ao caos imagético a que se propôs submeter.
Sabemos da morte de Saddam, não através de um comunicado qualquer de uma agência de notícias, mas sim porque a execução entrou pelas nossas casas dentro, sem pudor, prenhe de uma violência que fere o falso humanismo que acreditamos ser o fundamento cultural do nosso mundo. É no limite que se decide a ética de um Homem. No limite, aceitamos a pena de morte dos E.U.A. porque acreditamos na imperfeição humana; ou mais precisamente, na imperfeição da democracia tal como a conhecemos. Mas a ética ocidental não convive bem com os valores estranhos à cultura em que foi fundada; e estranha que uma das suas mais espectaculares criações, a mediatização da vida privada, faça ricochete e atinja com redobrada força os alicerces frágeis que a sustentam.
Para a revista Time, o Homem, no seu conjunto, foi a personalidade do ano em 2006. A TV e a Internet, os seus veículos de afirmação. O YouTube, umas das suas faces mais populares. A todos, agradecemos o circo real que foi montado nos últimos dias do ano que passou. E tudo o que virá a seguir - sem catastrofismos em subtexto.

[Sérgio Lavos]

Videografias 6


Stefan Arni e Siggi Kinski são, como os Sigur Rós, de Reykjavik. O duo, que em 1995 forma os GusGus, dedicou-se também à realização de alguns anúncios e videos (dos Travis por exemplo). Da Islândia, juntam a beleza das imagens às sonoridades dos Sigur Rós. Com Glósóli criam um mundo próprio, uma linguagem em comum com a emotividade da banda islandesa. Marcados por um imaginário insular autóctone, criam um conto visual sobre seres que vivem numa realidade paralela à nossa (as roupas das crianças remontam a outra era). Mas, não nos deixemos enganar pela estrada alcatroada. Das grandiosas paisagens vulcânicas islandesas acordam seres fantásticos, crianças que acordam de sestas dormidas nas rochas, nas encostas, e percorrem trilhos de lava entre água, enxofre e erva verdejante. Ao contrário do que pode parecer, o beijo que vemos não copia o outro beijo gay de Vidrar vel til loftárása; aqui o beijo acontece entre um rapaz e uma rapariga. E a imagem vibra, de cor, de ingenuidade, de paisagens vulcânicas puras, de saturação das cores obtidas, tão simplesmente, pela utilização de um filtro para filmar o céu. Após três dias de filmagem e de muito esforço físico, podemos visualizar uma preciosidade.
Segundo a tradução inglesa disponível na net: Glowing Sun (Bright Sun)
Now that you're awake
Everything seems different
I look around
But there's nothing at all

Put on my shoes,
I then find that
She is still in her pyjamas
Then found in a dream
I'm hung by (an) anticlimax

She is with the sun
And it's out here

But where are you...

Go on a journey
And roam the streets
Can't see the way out
And so use the stars
She sits for eternity
And then climbs out

She's the glowing sun
So come out

I awake from a nightmare
My heart is beating
Out of control…

I've become so used to this craziness
That it's now compulsory

And here you are...

I'm feeling...

And here you are,
Glowing sun...

And here you are,
Glowing sun...

And here you are,
Glowing sun...

And here you are...

Para se ver vezes sem conta; para se acreditar em anjos caídos ou para simplesmente se admitir que não compreendemos nada deste mundo.
[Susana Viegas]

03/01/07

Ano passado

Por inteiro, de alma e coração, estou com os manifestantes que protestaram em Nantes contra o fim do ano que passou. Há causas que valem a pena, e não estou a ver nada mais justo do que lutar por uma vida sem a consciência da passagem do tempo. Os resultados - é o que menos interessa.

[Sérgio Lavos]

Sob a Areia

Quando a câmara, no plano inicial, desliza sobre o Sena até à marginal, captando para sempre os parisienses que apanham sol sob as pontes da cidade, sabemos que nada vai ser como se mostra naquele momento, banal e quotidiano.

Depois da realidade tudo se vai desmoronar, escoar-se como areia por entre os dedos, um lento desvanecimento marcado pelo ritmo das ondas assolando a praia, uma violência surda que é mais forte à noite, quando tudo dorme. E é à noite que surge a aparição de Marie, contra o negro, como se fosse ela o fantasma que habita o filme, e não Jean. Talvez este seja o motor que dirige todos os seus movimentos, toda a negação perante o absurdo de um corte que não é bem corte, é ferida superficial sangrando, um sofrimento constante que desgasta o corpo e nega a continuação da vida, que não permite que o luto se faça de maneira definitiva. Meses depois acordamos no meio de um dia, e descobrimo-nos perdidos no filme, imersos no lento e subtil deslizar para a loucura. As ondas, são as da praia onde tudo aconteceu, onde Jean desaparece para sempre (?), e são as ondas de Virginia Woolf, as ondas que marcam o compasso musical da vida, a formação, o culminar e o abatimento da água sobre a areia. A mesma Virginia Woolf que morre afogada, de maneira a que Vincent, o possível elo de religação ao presente de Marie, chama horrível, mas que para ela encerra uma beleza serena. A morbidez de Marie transforma-se depois numa imitação de necrofilia, quando ela se masturba pensando em Jean, e no seu duplo momentâneo e concorrente, Vincent. No fundo, todo o amor é egoísta, e o sexo será a prova dessa evidência. Mesmo na cama que Marie e Vincent partilham, Jean continua a existir, confirmando que é impossível apagar a marca deixada pela intimidade, pelos gestos ao longo de tantos anos partilhados, gestos que são repetição, mesmo tédio, mas que ganham outra força quando desaparecem, como se dissessem que é preferível o tédio ao vazio, à ausência de tudo.

Ao longo do filme pequenos sinais vão sendo semeados por Ozon para a reconstituição de um corpo, fílmico e humano: a manteiga a barrar a torrada, o despertador para a manhã seguinte, a luz apagada depois de o livro estar pousado. E são estes sinais que constroem a intimidade, presente para além da ausência de amantes. É uma intimidade britânica, como no filme de Patrice Chereau, adaptado de um romance de um inglês, Hanif Kureishi. E é também uma intimidade que faz a ponte com a obra de Virginia Woolf, directa e indirectamente citada por Ozon. O rosto de Charlotte Rampling é a imagem “woolfiana” que se destaca, surge da neblina e atravessa a tela como um espectro que se esqueceu de esquecer. Ela procura manter-se durante o filme à tona da água, e a água é aqui a fronteira, a “ténue linha vermelha” que separa a memória do esquecimento, a razão da loucura. Rampling é também a figura pré-rafaelita que Virginia Woolf personificava, ou uma resposta à mrs. Dalloway que se tenta lembrar do que perdeu; Marie procura esquecer o que lhe foi arrancado, para voltar a mergulhar no quotidiano, sinónimo de esquecimento. O enigma final prolonga o mistério, que é sempre duplo; será que Jean morreu? A certeza transparece para além de qualquer dúvida, mas Ozon insiste na continuação do jogo, até ao plano final: quem é o fantasma, Jean ou Marie, o morto ou quem escolheu morrer?

[Sérgio Lavos]

01/01/07

Balanços

Nesta última semana, andei a organizar mentalmente listas, à força de me faltarem os meios de as ordenar por escrito – todos os anos me sirvo de uma agenda que é apenas usada durante dois, três meses; depois, as anotações das minhas actividades caem, de modo irremediável, no buraco-negro da memória, arriscando decisivamente o esquecimento. Contudo, há um método que me serve de desculpa para esta falta de método: sei que aquilo que recordo será apenas o que foi verdadeiramente importante, e isso continua a ser suficiente – ainda não existe o receio da falência da velhice.

Abandonei as listas. Porque não li o suficiente (pelo menos, não me dediquei a novidades editoriais de modo sistemático, ponto de honra meu); porque o ritmo de visita a salas de cinema continua bastante instável; porque não gosto de me atirar com unhas e dentes a toda e qualquer novidade musical – apesar da partilha de ficheiros que se tornou norma no último ano. E por outras razões, de que agora não me quero recordar.

Mas cheguei a uma conclusão, no que diz respeito a filmes. Dois no topo: Caché-Nada a Esconder, de Michael Haneke, e Uma História da Violência, de David Cronenberg. Há outros, mas interessa-me falar apenas destes dois.

Porque este foi o ano que acabou com uma das maiores repugnâncias a que assisti nos últimos tempos: o enforcamento de um ser humano quase em directo nas nossas salas aquecidas pelo espírito natalício. Saúde-se este regresso aos tempos medievais, quando o povo assistia na praça das cidades às execuções públicas de criminosos e bruxas! A televisão é este maravilhoso meio que diariamente desmente a proclamada superioridade moral do Ocidente. A exibição de atrocidades já tinha começado quando Saddam foi capturado – o horror da natureza humana em forma de humilhação televisionada – e culminou de forma espectacular na abertura de telejornais por esse mundo fora, com declarações de felicidade perante a morte de um homem (ou monstro? Não há diferença) à mistura, prime-time televisivo para a miséria humana. E não falo das vítimas do ditador, porque essas têm o direito à vingança (mas não em directo, claro); falo dos espectadores a milhares de quilómetros de distância, inocentemente (ou não) imbuídos no rastilho ateado pelos líderes que os governam. A voz do dono é aquela que se regozija com a pena de morte em directo.

Não será necessário avançar muito na ligação entre os tempos que vivemos e as obras que vão sendo produzidas. O filme de Haneke consegue ser simultaneamente uma reflexão sobre os mecanismos endémicos da violência e uma denúncia inteligente do papel que os media podem ter na propagação dessa violência. A tensão que pulsa ao longo do filme culmina na explosão de sangue que salta do ecrã subitamente e deixa o espectador perdido nos seus próprios preconceitos. O mesmo método da sua obra anterior, Brincadeiras Perigosas, sem a desnecessária carga psicanalítica que está presente, por exemplo, em A Pianista.

Já a obra de Cronenberg passa por ser um jogo - perigoso, porque não? – e uma séria demonstração do potencial de violência que habita em cada um de nós. No momento errado (ou certo) o impulso surge mesmo no mais pacífico dos homens. Não será um lado animal, demasiado simplório; é antes um instinto de sobrevivência que se ancora na eficácia do assassinato, da capacidade inata que cada um tem de matar de modo frio e terrivelmente racional. A inteligência humana permite a dissimulação, a mentira e a agressividade extrema.

Basta olhar para o mundo de hoje para percebermos isso. Ou então, entender as obras que ainda conseguimos produzir de maneira a que a nossa compreensão do mundo não se baseie num pessimismo patológico. Se há quem ainda consiga criar no meio do caos, nem tudo pode estar perdido.

[Sérgio Lavos]