01/05/13

Montmartre, 1.º desvio

Quando decido escrever sobre a vida que vivo
atraiçoo o que está fora dela -
encontro à hora certa os fantasmas da viagem,
a melancolia de uma tarde noutra cidade,
as pessoas na sua rotina comum,
e eu procurando as ruas de há cem anos
batidas por poetas que mal conheço;
a mesma caça de outrora,
menos verdadeira, uma verdade fora de prazo,
desajustada como as casas respirando
os ares venenosos de uma modernidade nunca cumprida.

Vou subindo as escadas,
e cada degrau me vai esquecendo;
paro e desato a tirar fotografias,
tanto rosto que se me quer escapar,
não sabem que não me é permitido o registo
do presente nem a ilusão do passado.
Meti-me num avião sabendo muito bem o que esperava:
desencontrar as sombras dos meus poetas,
chegar ao lugar e percorrer
o bravo caminho de agora,
o que me resta, deitar notas ao papel
e depois lembrar o desencanto - mas não era assim, não era;
sorria enfiado num fato demasiado largo,
o sorriso compostinho dos turistas,
sorria tanto como aquele japonês de Nikon espetada
em direcção às encostas que desaguam na cidade,
o mar plano de onde se ergue a torre, maldita profecia
de uma humanidade perdida.
Sorria tanto como tantos que saíram
de casa, julgando que assim se comprometiam com
uma transumância que não passa de uma ideia de viajante
submetido ao suave adorno da burguesia - era mais um de muitos,
e pensava, sorrindo do lugar mais do que comum, na fuga para a Abíssinia,
o desaparecimento.

Cadência vulgar,
a do passeio; os corvos estremecem
na alma dos turistas. São muitos, muitos,
cada vez mais a caminho da morada térrea de Truffaut.
A flor que lá foi deixada, já sei, já sei, de nada vale.
Regressamos pelas ruas a disparar contra um vazio
que se aloja nos ossos e um gato - esse, verdadeiro viajante -
aproxima-se, confiante. Damos-lhe pão que ele engole num golpe rápido e partimos,
embrulhamos o coração num pano seco, carregâmo-lo
até ao próximo cruzamento.

O trânsito, não pára.
A vida nunca pára.

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