15/05/13

O labirinto

"Ouvi Borges dizer que se recordava que uma tarde o pai lhe tinha dito algo muito triste sobre a memória, tinha-lhe dito: «Pensei que conseguiria recordar a minha infância quando cheguei a primeira vez a Buenos Aires, mas agora sei que não consigo, porque creio que se recordo algo, por exemplo, se hoje recordo algo desta manhã, obtenho uma imagem do que vi esta manhã. Mas se esta noite recordo algo desta manhã, o que então recordo não é primeira imagem, mas sim a primeira imagem da memória. Assim, cada vez que recordo algo, não o estou a recordar realmente, mas estou sim a recordar a última vez que o recordei, estou a recordar uma última recordação. Por isso, na realidade não tenho em absoluto recordações nem imagens sobre a minha infância, sobre a minha juventude.»
Depois de evocar estas palavras do pai, Borges calou-se durante uns segundos que me pareceram eternos, e logo a seguir acrescentou: «Tento não pensar em coisas passadas porque, se o faço, sei que o estou a fazer sobre recordações, não sobre as primeiras imagens. E isso põe-me triste. Entristece-me pensar que talvez não tenhamos verdadeiras recordações da nossa juventude.»

Esta passagem de Paris Nunca se Acaba, de Vila-Matas, já tinha ficado a bailar no meu espírito da primeira vez que li o livro, há uns anos. A analogia da memória como uma cebola à qual se vão retirando as várias camadas, até restar nada, fabulosa na sua simplicidade, é também terrivelmente verdadeira. As nossas recordações são codificadas em imagens, e não podemos confiar nelas. Podemos lembrar sons, palavras, até cheiros ou sabores, mas estas sensações não-visuais são sempre inseridas numa cena. O passado projecta-se no nosso presente, imagens numa tela, mas nunca poderemos seriamente confiar nas imagens que vemos - o filme da nossa vida pode ser tão inventado como qualquer fita a que assistimos. 
Pensar que o passado, por mais forte que seja a impressão que deixa no nosso presente, pode não ter existido, poderia levar-nos, se quiséssemos, à loucura. Confiamos nas imagens que não são mais do que recordações de uma recordação. Não sabemos, nunca saberemos, o que perdemos e o que ganhámos, o que acrescentámos ao que vivemos. Claro que a técnica - fotografia, filmes - permite-nos fixar a realidade, fintando os truques da memória. Mas até essas imagens mentem, ou pelo menos escondem a parte do passado que existe para lá do enquadramento.
Por outro lado, não só não podemos confiar nas recordações como nunca poderemos saber o que sentimos no momento em que recordamos. Achamos que sabemos o que sentimos, mas poderemos na realidade saber o que pensávamos de um acontecimento ocorrido aos doze anos, estando a ver aqui do presente, o olhar moldado por aquilo que somos agora? Há algumas formas de loucura que aprisionam o ser no passado - talvez esses loucos consigam saber exactamente o que sentiam, o que pensavam, num qualquer momento traumatizante da sua vida que para sempre será repetido, em loop perpétuo. O castigo por recordarem de verdade é a perda do presente - viver exactamente no passado, como aconteceu, não permite que vivamos para o que somos, agora, e para o que viremos a ser. A história da mulher de Lot, contada no Génesis, que olha para trás, para Sodoma destruída, desobedecendo a Deus, e se transforma numa estátua de sal, revela a essência dessa maldição de forma perfeita.
E depois, há os sonhos. Muitas recordações que eu tenho, sonhei-as. Isto é: eram recordações de coisas reais com que sonhei, e a partir da primeira vez que as sonhei, passei a lembrar apenas o sonho. Portanto, não é apenas pensar em coisas passadas que são imagens das recordações, mas pensar em sonhos que são imagens das recordações achando que esses sonhos são as verdadeiras recordações. 
O labirinto mental de Kubrick (em Shining) é provavelmente a imagem mais clara do mundo de incertezas e enganos em que estamos enredados. Talvez por isso, a psicanálise aponte para a ideia de que um homem são seja alguém que vive o mais afastado possível do seu passado. Quem vive no presente, consegue fugir às imagens que distraem e enganam, à ilusão.

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