Não conseguir libertar-me do mundo em que vivo pode ser ainda mais opressivo do que a prisão que a simples enunciação desta impossibilidade sugestiona. O mundo em que vivo é um mundo cada vez mais cruel, injusto, um mundo em que os acabrunhamentos implícitos da existência se vão multiplicando, numa impotência que há bem pouco tempo não se julgaria possível.
As notícias de jornal, as reportagens da televisão, as conversas de café. Três planos diferentes, cada um apontando para o mesmo: não se vislumbra saída para o impasse, todas as possibilidades parecem vedadas. Será assim para muita gente, cada vez mais pessoas, não será para alguns que navegam a fortuna, escapando à vaga que tudo parece arrastar. Nunca vi tanta tristeza nos olhos das pessoas. E o medo, disfarçado pela sombra da resignação. A vontade de poder, que para a esmagadora maioria nunca passou apenas de uma vontade de lutar por uma vida melhor, é constrangida a cada dia que passa por uma hierarquia sufocante, incontrolável. As pessoas sentem, as pessoas sabem, que pouco do que se possa fazer irá mudar verdadeiramente alguma coisa.
Há mudanças, pequenos assomos de mudança. Há talvez maior proximidade. O que nos une, a nós, proletários de um país que nunca deixou verdadeiramente de os ter, é a perda e a impotência. Sentimentos negativos, é certo, mas que estão criando laços invisíveis que poderão, quem sabe, ser o rastilho para uma verdadeira transformação. Os primeiros sinais, contudo, são de um medo mais profundo e perigoso. É no medo que prosperam o ódio e a negação, e não é, de modo algum, um acaso, que os movimentos políticos extremistas ressurjam, alimentando-se do ressentimento e da desesperança. Entre esta discreta união de despojados de uma política que escolheu vomitar a parte da sociedade que verdadeiramente nunca pertenceu, de pleno direito, ao paraíso da modernidade, e os movimentos extremistas para os quais é atraída outra parte destes despojados, se decidirá o futuro. As vozes que repetem que outra guerra poderá surgir a breve trecho poderão estar mais certas do que o bom senso aconselharia.
No dia a dia, nada disto conta. Os grandes planos são contrariados pelos pequenos incómodos. Basta afastarmos o espírito por algumas horas daquilo que produz a ilusão de guiar a nossa vida para percebermos que, afinal, a filosofia dos antigos e os manuais de auto-ajuda têm razão numa proposição: cada momento conta, esqueçamos o que nos leva a acreditar numa perspectiva demasiado grandiloquente das nossas minúsculas vidas. Olhar para as coisas, como elas são, senti-las. Sentarmo-nos a ouvir a natureza, e perceber que o barulho a que não costumamos prestar atenção, com um ligeiro esforço, pode-se focar, evidenciando todos os sons que o compõem: cinco cantos diferentes de pássaros, do trinado composto do pintassilgo ao monótono piar da carriça; o ritmo certo do longínquo cuco; a brisa suave soprando por entre as laranjeiras; as vozes familiares que dão sentido à distância que nos separa do mundo. E, se concentrarmos toda a nossa vontade no gesto, ouviremos o ruído de fundo do universo, pulsando desde o início dos tempos. A crise? Não existe.
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