Quando David Lodge se propõe a escrever uma biografia, já sabemos ao que vem. Há dois exemplos para comprovar a ideia: o romance à volta do "fracasso" de Henry James, Autor, Autor e o agora publicado em português Um Homem de Partes, de H. G. Wells. Não o esconde, de resto; as suas biografias têm tanto de ficção como da vida. O seu trabalho passa sobretudo por tapar os buracos que os documentos e os testemunhos encontrados depois da morte do biografado deixam para para a posteridade.
O método de Um Homem de Partes é esse. O resultado é um romance tão bem escrito que nos esquecemos de que aquelas personagens tiverem existência real, viveram mesmo. H. G. Wells, o socialista fabiano e escritor de ficção científica; as mulheres, as legítimas e as amantes; e os seus pares, outros escritores e intelectuais, com quem alimentou polémicas e rivalidades ao longo de uma vida longa e desigual, bem sucedida segundo os padrões de qualquer época.
Mas, acima de tudo, as mulheres. As "partes" de Wells são as que o constituem, as diversas peças de que ele é composto, mas são também as outras "partes", baixas, as que foram a outra medida da sua importância. Defensor do "amor livre", antes de esse conceito ser assumido como filosofia de vida mais ou menos da moda, Wells viveu dezenas de anos com a sua primeira mulher enquanto ia mantendo casos, mais ou menos passageiros, com as mulheres com quem ia se cruzando. Lodge retrata com mais pormenor as relações mais duradouras e as mais significativas, a começar pela relação com Rebecca West, feminista respeitada e escritora que a certa altura - já depois da morte do escritor inglês - foi considerada a mais importante autora viva.
O Wells que conhecemos neste livro é um clássico lodgiano: um intelectual tão consagrado como frustrado pelas pequenas lutas na Sociedade Fabiana a que pertencia e pela sensação de que a sua escrita não era considerada suficientemente "literária". Um escritor que acaba por procurar longe do leito conjugal a satisfação sexual, transformando o que é matéria da sua vida em matéria literária, não evitando o escândalo com a publicação de algumas das suas obras mais autobiográficas. As anedotas de índole sexual sucedem-se, assim com as conquistas. H. G. Wells, pela mão de Lodge, é uma espécie de Morris Zap (o protagonista de A Troca e de O Mundo é Pequeno) mais famoso e, convenhamos, menos acabrunhado com a sua vida sexual. As escapadelas de Wells encerram pouca ou nenhuma culpa - em sua defesa tinha a absoluta concordância entre teoria e prática. Excepto no que dizia respeito às suas mulheres: o amor livre funcionava apenas para um dos lados; o seu.
Tudo somado, as quinhentas páginas do romance passam a correr. Os diálogos podem ser inventados, as peripécias peripatéticas de Wells e das amantes também, mas não duvidemos do rigor académico de David Lodge. A técnica de Lodge é um espelho da usada por Wells nos seus romances autobiográficos: onde aquele mostra a vida criando o que não pode nunca ser conhecido, este escondia a sua vida mostrando o que deveria ser segredo recorrendo ao mecanismo da ficção. O académico David Lodge está a tornar-se especialista neste diálogo diferido entre escritores. Um prazer.
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