Andam dias em fuga,
saltam da sequência, a um não se segue
o outro, e ontem é como se fosse
um sonho ao qual não queremos dar forma.
Março assim, apenas o princípio,
a noite que chega mais tarde,
espera do calor, chuva caindo
por dentro da tristeza,
domingos traindo a sua natureza,
quando não esperamos o fim
de coração na boca.
E vamos enganando o tempo
com a dança dos dias que fogem.
Quando dermos pela brincadeira,
a morte terá o seu reino.
Nos sonhos de agora afastamos o
medo, renunciamos,
e a vida que teremos ao acordar
é um extenso areal onde
se encontram o mar e a memória
dos dias de praia que virão.
Quando assentamos no que somos,
percebemos que no ponto onde nos encontramos
não há movimento – apenas uma
infinita imobilidade, águas paradas, o fim da estação.
Calou-se a chuva. Março arranca.
30/03/13
26/03/13
Palavras
A linguagem, enquanto veículo imperfeito das ideias, é o nosso bem mais perigoso. Serve-nos no mais imediato, ajuda-nos a construir o nosso mundo, a tecer a teia de relações, mas pode ser fonte de embaraço ou de incompreensão, quando mal usada. A palavra certa no momento errado ou a palavra errada no momento em que a linguagem não pode falhar podem mudar o curso dos acontecimentos, por vezes de forma irremediável. As palavras são importantes. Mais do que as próprias ideias, de que se limitam a ser a sua expressão no mundo.
25/03/13
Um homem de partes
Quando David Lodge se propõe a escrever uma biografia, já sabemos ao que vem. Há dois exemplos para comprovar a ideia: o romance à volta do "fracasso" de Henry James, Autor, Autor e o agora publicado em português Um Homem de Partes, de H. G. Wells. Não o esconde, de resto; as suas biografias têm tanto de ficção como da vida. O seu trabalho passa sobretudo por tapar os buracos que os documentos e os testemunhos encontrados depois da morte do biografado deixam para para a posteridade.
O método de Um Homem de Partes é esse. O resultado é um romance tão bem escrito que nos esquecemos de que aquelas personagens tiverem existência real, viveram mesmo. H. G. Wells, o socialista fabiano e escritor de ficção científica; as mulheres, as legítimas e as amantes; e os seus pares, outros escritores e intelectuais, com quem alimentou polémicas e rivalidades ao longo de uma vida longa e desigual, bem sucedida segundo os padrões de qualquer época.
Mas, acima de tudo, as mulheres. As "partes" de Wells são as que o constituem, as diversas peças de que ele é composto, mas são também as outras "partes", baixas, as que foram a outra medida da sua importância. Defensor do "amor livre", antes de esse conceito ser assumido como filosofia de vida mais ou menos da moda, Wells viveu dezenas de anos com a sua primeira mulher enquanto ia mantendo casos, mais ou menos passageiros, com as mulheres com quem ia se cruzando. Lodge retrata com mais pormenor as relações mais duradouras e as mais significativas, a começar pela relação com Rebecca West, feminista respeitada e escritora que a certa altura - já depois da morte do escritor inglês - foi considerada a mais importante autora viva.
O Wells que conhecemos neste livro é um clássico lodgiano: um intelectual tão consagrado como frustrado pelas pequenas lutas na Sociedade Fabiana a que pertencia e pela sensação de que a sua escrita não era considerada suficientemente "literária". Um escritor que acaba por procurar longe do leito conjugal a satisfação sexual, transformando o que é matéria da sua vida em matéria literária, não evitando o escândalo com a publicação de algumas das suas obras mais autobiográficas. As anedotas de índole sexual sucedem-se, assim com as conquistas. H. G. Wells, pela mão de Lodge, é uma espécie de Morris Zap (o protagonista de A Troca e de O Mundo é Pequeno) mais famoso e, convenhamos, menos acabrunhado com a sua vida sexual. As escapadelas de Wells encerram pouca ou nenhuma culpa - em sua defesa tinha a absoluta concordância entre teoria e prática. Excepto no que dizia respeito às suas mulheres: o amor livre funcionava apenas para um dos lados; o seu.
Tudo somado, as quinhentas páginas do romance passam a correr. Os diálogos podem ser inventados, as peripécias peripatéticas de Wells e das amantes também, mas não duvidemos do rigor académico de David Lodge. A técnica de Lodge é um espelho da usada por Wells nos seus romances autobiográficos: onde aquele mostra a vida criando o que não pode nunca ser conhecido, este escondia a sua vida mostrando o que deveria ser segredo recorrendo ao mecanismo da ficção. O académico David Lodge está a tornar-se especialista neste diálogo diferido entre escritores. Um prazer.
24/03/13
Tédio
O tédio é uma forma de esvaziar a vida da sua importância. Como se cada minuto passado a pensar no que se há-de fazer não fosse um minuto desperdiçado, um minuto que deveria ser ocupado com uma das inúmeras actividades que fomos inventando para preencher o tempo que nos foi oferecido. Por outro lado, o tédio pode ser também uma bela ocupação do tempo. Procrastinar, pensar no que fazer a seguir, meditar nas coisas em que o nosso tempo não será ocupado. Tornar o tempo numa cadeia autofágica, engolindo-se na sua própria inutilidade. Ou, quem sabe, perder esses minutos a escrever sobre isso. A vida, afinal, não é importante. Tédio puro.
23/03/13
Andorinhas
As primeiras andorinhas andam por aí, mas certamente devem estranhar o frio e a chuva. No beiral por cima das janelas do quarto e da sala, elas fazem ninho. Os gatos não sabem que elas vão voltar, mas quando as crias deste ano começarem a atirar-se no vazio, experimentando as asas, desafiando a vida, vão fazer a mesma figura de sempre, trincar pássaros imaginários, retorcendo os bigodes com um prazer nunca concretizado. Eles, os gatos, não sabem que o ciclo se repete. Eu sei. Que ganho com isso?
22/03/13
Círculo
Somos vigilantes com os nossos hábitos, mas complacentes quando os quebramos. Precisamos tanto de sair à rua e sentir o sol no rosto como de ficar em casa a pensar no dia que perdemos. Não gostamos de estar quietos, no mesmo lugar - nem um livro nos prende além desse tempo de inércia, de paragem. Variações sobre o mesmo tema: nunca saímos do círculo que pisamos, regressamos sempre ao lugar e ao tempo que conhecemos.
21/03/13
Controlo
Se fôssemos imortais, existiriam deuses, a crença? A antropologia e outras ciências do Homem falam do misticismo como uma tentativa de explicação para aquilo que o ser humano não controla. Quando éramos mortais e a Natureza uma ameaça, apenas os deuses traziam algum consolo ao que fugia das nossas mãos, aquilo que nos embosca, que espera por nós no futuro. Fomos nos entregando à ilusão da imortalidade, através da invenção e do engano - a dupla face do progresso humano - e Deus foi desaparecendo da vida. Mas ainda resiste. Os teólogos racionalizam a crença, tornam transcendente o que é, por essência, imanente. Mas se não fosse esse medo primordial, vindo do fundo da consciência humana - um medo concreto, real, bastante simples nas suas premissas - a morte que nos encara de frente mesmo quando não a vemos, sentiríamos essa necessidade de acreditar naquilo que a razão nega, Deus e a sua eterna forma esquiva?
20/03/13
Crer
Não crer absolutamente em nada é tão insensato como crer sem questionar. Uma espécie de fé sem deus, sem ídolo. A modernidade ocidental oferece-nos a possibilidade de crescermos sem acreditar e partir desse ponto para um processo racional de crença. Se perdemos ou ganhamos com esta mudança, apenas um cínico poderá responder. E aprender a crença é um caminho que nos afasta dos cínicos. Não sabemos; mas não ousamos afirmar que não podemos saber.
19/03/13
Lá fora, o sol
Movida pela curiosidade, ela aproxima-se e senta-se, e ele surpreende-se. O seu olhar, quando ela entrou, também se surpreendera com aquele fantasma breve do desejo, o que está sempre à espera, rápido clamor, rara aparição a cada momento sonhada. Na outra margem do desejo, possibilidades infindas. O comboio avança, um telemóvel toca, ela sai na próxima. Lá fora, o sol.
11/03/13
Ozu
Não sei onde terei lido que Ozu era o cinema. Se alguém o disse, consegue-se perceber porquê; nele, as imagens são a verdadeira história que está a ser contada. O que não sabemos, o que as personagens não dizem, vive nas imagens. Ozu é o cinema, no sentido em que o cinema é arte das imagens e do tempo que nelas se representa, e talvez não seja acaso que fosse japonês; o que está oculto é sempre mais importante do que aquilo que é revelado. No meio da paisagem saberemos encontrar o que se disfarça - como o comboio emergindo da floresta, em Bakushû.
10/03/13
09/03/13
Prisões
Os dias que são como feixes de luz cruzando-se, diluídos uns nos outros. Mas cada um promete uma singular proposição, nunca cumprida. Fingir cada meta atingida, aceitar a fraude dos objectivos ultrapassados. Linguagem morta, números e prisões repetidas. Cada vez mais me sujeito a isso. Regulo as dores, coloco-as numa ordem superlativa. Consigo hierarquizá-las de um modo mais ou menos definitivo, estabelecer prioridades, coisas a rejeitar e problemas que terei de resolver, sinto a solução como um disparo que vence a distância entre o ponto de origem e o agora. É agora. A seta do tempo regressou, e ainda estou aqui como se tivesse passado sete anos e alguns meses. Agora.
08/03/13
Tempo livre
Numa tarde de domingo, em Central Park, ou
numa tarde de domingo, em Hyde Park, ou
numa tarde de domingo, no jardim do Luxemburgo, ou
num parque qualquer de uma tarde de domingo
que até pode ser o parque Eduardo VII,
deitas-te na relva com o corpo enrolado
como se fosses uma colher metida no guarda-
napo. A tarde limpa os beiços com esse
guardanapo de flores, que é o teu vestido
de domingo, e deixa-te nua sob o sol frio
do inverno de uma cidade que pode ser
Nova Iorque, Londres, Paris, ou outra qualquer,
como Lisboa. As árvores olham para outro sítio,
com os pássaros distraídos com o sol
que está naquela tarde por engano. E tu,
com os dedos presos na relva húmida, vês
o teu vestido voar, como um guardanapo,
por entre as nuvens brancas de uma tarde
de inverno.
Nuno Júdice, em Meditação Sobre Ruínas, ed. Quetzal.
numa tarde de domingo, em Hyde Park, ou
numa tarde de domingo, no jardim do Luxemburgo, ou
num parque qualquer de uma tarde de domingo
que até pode ser o parque Eduardo VII,
deitas-te na relva com o corpo enrolado
como se fosses uma colher metida no guarda-
napo. A tarde limpa os beiços com esse
guardanapo de flores, que é o teu vestido
de domingo, e deixa-te nua sob o sol frio
do inverno de uma cidade que pode ser
Nova Iorque, Londres, Paris, ou outra qualquer,
como Lisboa. As árvores olham para outro sítio,
com os pássaros distraídos com o sol
que está naquela tarde por engano. E tu,
com os dedos presos na relva húmida, vês
o teu vestido voar, como um guardanapo,
por entre as nuvens brancas de uma tarde
de inverno.
Nuno Júdice, em Meditação Sobre Ruínas, ed. Quetzal.
06/03/13
Serrei a macieira ao pé da janela
Serrei a macieira ao pé da janela.
Por um lado, tapava a vista,
a sala de estar ficava pálida no Verão,
por outro lado, os grossistas já
não queriam aquela qualidade de maçã.
Pensei no que diria
meu pai, ele gostava
daquela macieira.
Ainda assim, serrei-a.
Está muito luminoso, posso
ver para lá do fiorde
ou observar
mais vizinhos,
a casa está agora à vista
de todos, mostra
mais de si mesma.
Não quero admiti-lo, mas sinto falta da macieira.
As coisas não são o que eram. Dava um bom abrigo
e boa sombra, o sol espreitava através dos ramos
em direcção à mesa, e à noite eu costumava deitar-me
a ouvir as folhas ao vento. E as maçãs –
de sabor mais apimentado, na Primavera, não há.
Dói sempre que olho o cepo: quando
enfraquecer, irei desfazê-lo em lenha.
Um poema de Olav H. Hauge traduzido por Henrique Manuel Bento Fialho.
Por um lado, tapava a vista,
a sala de estar ficava pálida no Verão,
por outro lado, os grossistas já
não queriam aquela qualidade de maçã.
Pensei no que diria
meu pai, ele gostava
daquela macieira.
Ainda assim, serrei-a.
Está muito luminoso, posso
ver para lá do fiorde
ou observar
mais vizinhos,
a casa está agora à vista
de todos, mostra
mais de si mesma.
Não quero admiti-lo, mas sinto falta da macieira.
As coisas não são o que eram. Dava um bom abrigo
e boa sombra, o sol espreitava através dos ramos
em direcção à mesa, e à noite eu costumava deitar-me
a ouvir as folhas ao vento. E as maçãs –
de sabor mais apimentado, na Primavera, não há.
Dói sempre que olho o cepo: quando
enfraquecer, irei desfazê-lo em lenha.
Um poema de Olav H. Hauge traduzido por Henrique Manuel Bento Fialho.
04/03/13
RG
Blogue sem lista de blogues que por vezes é este auto-retrato. Não consigo perceber se mereço tal estima. Vale-me que o retrato do Ricardo é dos poucos que me restam do início de tudo. E continua a valer a pena, agora com nova moldura.
Amor
Compreende o rio.
Aprende o seu ritmo,
segue ao longo da margem
sabendo que a cada passo o rio
segue contigo, e que na
foz se encontra a imagem
sobre a qual se desenha a fórmula,
a molécula, o olhar
que permitirá à luz opaca
do futuro se revelar num esplendor
primaveril, divino.
Segue o rio,
a água, o corpo maleável
que à vida se cose, se contorce,
e nele quando descobres
o rumor é como o clarão
de que se despede o dia.
Aceita o rio; e se nele não encontrares
o sangue ardendo, as entranhas,
entrega-te a mim, que eu sou em ti
o rio que te procura, voz na sombra, passado
reunindo o caminho bifurcado.
Aprende o seu ritmo,
segue ao longo da margem
sabendo que a cada passo o rio
segue contigo, e que na
foz se encontra a imagem
sobre a qual se desenha a fórmula,
a molécula, o olhar
que permitirá à luz opaca
do futuro se revelar num esplendor
primaveril, divino.
Segue o rio,
a água, o corpo maleável
que à vida se cose, se contorce,
e nele quando descobres
o rumor é como o clarão
de que se despede o dia.
Aceita o rio; e se nele não encontrares
o sangue ardendo, as entranhas,
entrega-te a mim, que eu sou em ti
o rio que te procura, voz na sombra, passado
reunindo o caminho bifurcado.
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