15/10/11

Uma fábula

A estupidez é uma forma de violência
que impõe a sua lei num país de cobardes e oportunistas,
gente que aceita a sua condição de moeda de troca
menos valiosa do que os escravos que vinham de África
- ao menos sabiam da sua condição, eram mais lúcidos -
e mais depressa descartável, porque nem a força do trabalho
serve num tempo em que tudo se joga no vazio,

a crise financeira abateu
os corações e tornou o povo fraco
derrotado ordinário sereno e feliz
acomodado ao conforto burguês dos
bens hipotecados, dos empréstimos a prazo,
da esperança que regressa na próxima mudança de governo,
da sensação de fim, da pacífica eutanásia

de um vigor de que não se tem memória,
de uma força há tanto desaparecida
que apenas se prolonga na falsidade
da literatura, em verso ou em prosa,
escritos de antigos heróis cujas estátuas povoam
as nossas rotundas -
a modernidade chegou com uma inauguração autárquica

e com o aplauso geral das senhoras de estola (aquelas
que pensávamos ser apenas figuras de ficção)
e dos mafiosos príncipes da desolação,
chupando fálicos charutos e sorrindo para as câmaras
de televisão, rindo na cara do povo que lhes deu o voto
e lhes desculpa o roubo, a cara-de-pau, a ostentação,
e tudo mais que dali venha, pois o respeito

é bonito, e aprendemos a ser homens aceitando
o eterno constante, o que aprendemos na escola,
a admirar ao longe os feitos de uns barbudos
revolucionários que trouxeram a "liberdade" à pátria,
ou então aprendemos a desdenhar
e a culpar esses barbudos revolucionários
pela decadência agravada.

Imagens do presente que repetem
derrotas do passado, e o desassombro
permanente, a satisfação de aceitarmos o cansaço,
de sabermos que pouco podemos fazer para mudar
a epidemia geral da estupidez, a sua carantonha feia,
habituados e tristes, fodidos e anestesiados,
mal pagos pelos criminosos que escolhemos

para decidir as nossas vidas,
abraçamos de bom grado o que aí vem,
e nenhum fervor provisório, nenhum terramoto,
nos resgata do estado de estupor a que decidimos
submeter aquilo que somos, aquilo que achávamos ser,
o que em tempos julgaríamos alcançar.

Ainda há tempo?

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