29/07/08

Viver

A maior vantagem da escrita é permitir falar das coisas sem nos referirmos directamente a elas. Um código para usar, um labirinto sem centro, onde se esconde a verdade, ou então uma linha da qual não se vislumbra o início nem se imagina o fim. Qualquer linguagem, enfim, é simbólica.
O mais falacioso sistema da época moderna é a psicanálise; Freud conjecturou sobre imagens, criando um código que cristalizava essas imagens, sem se preocupar em relacioná-las com a realidade representada. A sua pseudociência rapidamente (o que são vinte ou trinta anos, na idade do mundo?) se tornou religião, percorrendo um caminho curiosamente inverso a outras disciplinas do passado (a alquimia, a astrologia, etc.). Do racionalismo puro do século XVIII, passámos em cem anos a um relativismo subjectivo que transbordou do meio em que nasceu e tomou conta do mundo. Com o avanço do século passado, a psicanálise ganhou um poderoso aliado, os antidepressivos. Religião e droga; duvido que haja mistura mais perigosa e eficaz para a humanidade pós-moderna.
A vantagem da psicanálise é permitir a quem se deita no divã uma hora de sossego e engano (que são no fundo a mesma coisa); a descodificação do inconsciente é um ofício de sombras, controlo de almas perdidas. Se o psicanalista quisesse mesmo resolver o problema do paciente, dizia-lhe a verdade: a vida é lixada, e não tem solução nem sentido. Levanta-te e anda, levanta-te do divã e enfrenta a vida, não há outra possibilidade de existência.
O cliché da escrita como psicanálise é um absurdo: não se pode confundir um acto criativo, força da imaginação, com o esvaziar da gravidade da existência. Se a escrita é potência libertadora, a psicanálise é prisão voluntária, a entrega da alma a um desconhecido. Desistência.
Qualquer linguagem é simbólica; mas na relação paciente/psicanalista, quem cria é o psicanalista. Sufocado por uma vaga de símbolos, pouca esperança resta ao paciente; antes a loucura. A loucura.

[Sérgio Lavos]

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