18/07/07

Luvas de médico

Se outra oportunidade não surgisse, teria de aproveitar a que o Público, na sua encarnação demodé chic P2 (outra maneira de apelidar a bela salada russa que é aquele caderno), decidiu a dar ao livro que mais fez por enriquecer uma senhora australiana que veio directamente da sarjeta (era produtora de televisão) para o programa da Oprah.
(Antes de mais, aproveito para esclarecer que o dito programa era coisa que me passava completamente ao lado, até há dois meses; até Cormac McCarthy começar a ser procurado nas livrarias por donas-de-casa menos que desesperadas e leitoras apaixonadas de livros de Jesus Cristo canalizados pela filha do Raul Solnado. Parece que ele foi lá; e que "A Estrada" se tornou um semi-best seller em Portugal - comprovadamente. O que me surpreendeu não foi o facto de ele ter ido lá - toda a gente precisa de fazer pela vida - mas o facto fantástico da apresentadora ter lido a comovente dedicatória (ao filho) e ter achado que aquilo era livro para convencer os milhões de sub-humanos que se deleitam com os seus conselhos diariamente. O mundo realmente já não é o que era.)
A jornalista dedica-se no artigo a dissecar as razões do êxito de tal produto, com a dose certa de cinismo e vontade jornalística de fazer um trabalho decente. O que azucrina estas profissionais não são os milhões de pessoas que decidem gastar alguns euros no livro; nem sequer o pudor derrotado por ter de obedecer ao chefe de redacção; o que realmente chateia esta gente é o facto daquela coisa ser um livro. Ouviram (?) bem: "O Segredo" é um livro, e isso chateia. Chateia, porque se pode encontrar nos mesnos locais onde se encontra a "Odisseia" ou "O Anti-Cristo" ou até quem sabe as "Elegias" de Holderlin. Pois é, é assim mesmo. Não há zonas desnuclearizadas neste belo Paraíso consumista onde vivemos. Um livro é um livro é um livro: um conjunto de páginas responsáveis pelo abate de mais algumas árvores da floresta amazónica, alguma tinta (nada biodegradável) e cola. Nada mais que isto. É que, na verdade, tudo é um produto, tudo se vende e se compra. Se alguém esperto decide facturar uns milhões à custa da ignorância de alguns milhões, qual é o problema? A questão: nada é de graça. Não vale a pena rebater, recorrendo ao sarcasmo, tal fenómeno. Queremos livrarias assépticas, desinfestadas de tal praga editorial? Deixem de considerar o lucro como objectivo máximo do negócio - paradoxo a que apenas homens como Vítor Silva Tavares, editor da &etc, se podem dar ao luxo de prender.
Na verdade, ninguém liga ao assunto. As pessoas continuam a comprar, com mais ou menos vergonha, à socapa, o livrinho da Rhonda Byrne. Continuam a achar que, aceitando banha da cobra, poderão enriquecer alguém mais para além de todos os que já lucraram com a comercialização do livro (e são bastantes). Nem se apercebem, no caso de serem habituais do tema, que têm as prateleiras cheias lá em casa com livros do Dale Carnegie ou do Trevisan ou da vizinha do 5º esquerdo que começou a ver Deus na sanita e decidiu escrever um livro sobre o caso, livros esses que repetem exactamente as mesmas coisas que o livro que acabaram de comprar diz. Não é importante. Compram o livro como se comprassem um par de chinelas. E é tudo.

[Sérgio Lavos]

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