13/04/07

O começo de um livro é precioso

Sei que tudo o que li antes de agora será necessariamente melhor do que aquilo que vou ler. A cada livro a sensação repete-se. Mas a cada livro a sensação se esbate, vai perdendo a sua força.
Tocar, abrir, cheirar. Passar os olhos pela contracapa, pela badana, sentir o papel, espreitar as palavras formando-se no papel. E começar.
As primeiras letras, as primeiras palavras, as primeiras frases, os primeiros parágrafos, a primeira página. Reconhecemos logo os lugares a que sempre regressamos, lemos o mesmo livro repetidamente. Mas, por vezes, recuamos. Recusamos, porque algo está ausente. O livro fica por ali, não fará parte de nós. O tempo apura o gosto, por isso a cada nova experiência erramos menos. A grande família de todos os livros que havemos de ler nem sempre nos visita, mas sabemos que ela existe, e que existe para se tornar convidada na casa do leitor. Quando avançamos, ou porque o autor nos conhece, ou porque a história, mesmo que escrita por algum desconhecido, nos parece vagamente familiar, entramos numa floresta que se fecha à nossa passagem, uma floresta que conhecíamos apenas de sonhos. Agora, ela toca o nosso corpo, e revolve as entranhas.
Mas os mapas que espreitam das estantes vão nos revelando um território cada vez mais conhecido. Aceito a inevitabilidade do tempo, o modo como ele nos oferece o conhecimento do mundo e nos retira a novidade de tudo. Aceito que não voltarei a sentir a vertigem de mergulhar nas aventuras que Enyd Blyton e os seus cinco, nas epopeias de Julio Verne, nos mistérios de Agatha Christie. Mais tarde, os livros de FC da Caminho, os mundos intrigantes de Heinlein, Bradbury, Aldiss; mais tarde, uma obra descoberta de forma acidental: o 1984, de Orwell. Teria 14 anos, penso que o livro estava arrumado na secção de FC da biblioteca da minha escola. O acaso fala uma língua estranha e bela. E quem poderá ler Kafka uma segunda vez sem ter presente a primeira, o assombro de uma nova língua criada dentro da língua?
Um novo livro agora traz o reconhecimento. Conhecemos aquilo que já sabíamos existir em nós. O tempo das revelações entrou nas suas horas de declínio. O começo de um livro é precioso, diz Llansol, e sei que a frase não é esta, mas permito-me inventar a minha frase aproximando o sentido. Volta a nós, num retorno interno, circular, emerge do que estava oculto e sobe, por momentos, à superfície.

(Texto vagamente semelhante a outro, publicado no Arquivo Fantasma.)

[Sérgio Lavos]

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