20/04/07

Hotel Memória

Ando há algum tempo para escrever um texto sobre o último livro de João Tordo (Hotel Memória, ed. Quidnovi), mas tem-me faltado o tempo na mesma medida em que abundam os adjectivos para classificá-lo. Como fui habituado a usar de parcinómia no que à literatura diz respeito (vício académico), resisti ao trabalho e deixei-o ganhar corpo. Não foi assim há tanto tempo que o terminei de ler mas já me escapa o nome da personagem que dá corpo ao romance, um fadista português emigrado nos E.U.A., durante quarenta anos perseguido por um crime que nem ele sabe se cometeu - ou pelo menos, achamos nós que ele não sabe. Mas a seu tempo acaba por regressar a história inventada por Tordo. No caso, depois de ler um dos textos que João Lisboa tem publicado no seu blogue a propósito de Tom Waits. Uma das faixas do seu álbum de 2000 "Blood Money" intitula-se "The Part You Throw Away" e passa por ser um fado. Um fado à maneira de Tom Waits nunca poderá ser algo de reconhecível, claro, mas de algum modo a distância que separa Waits de Alfredo Marceneiro (ler o texto de João Lisboa para compreender o caminho) não é assim tão longa; desde a marginalidade vivida através da música até ao improvável uso de uma voz que, à partida, estaria pouco ou nada fadada para o canto, encontram-se pontos comuns entre um e outro que não me parecem ser apenas fruto do acaso - exagero evidente, o acaso teve mesmo alguma coisa a ver com o encontro de Waits com o fado. Não adianta nada à música compreendermos o mecanismo por trás do gosto. A banalidade poderia obrigar a que falássemos da imperfeição humana e do modo com ela toca cada um de nós como explicação para o prazer que retiramos de vozes como a de Tom Waits. Entendemos os defeitos, integramo-los no todo da obra, e passam a ser pequenos passos para a perfeição.
Daniel da Silva (sempre sabia o nome) é o fadista português tornado grande baleia branca para o Ismael da história de João Tordo. Canta como Alfredo Marceneiro, viaja para a América fugindo de um crime e encontra o sucesso com a ajuda da mais improvável das personagens. O sucesso é relativo e fugaz, e ele acaba por ser novamente perseguido, torna-se fugitivo, desaparecido, mítico - lenda americana do artista retirado do mundo. Reemerge por momentos com outro nome, respira à tona, julga-se a salvo, apenas para voltar a mergulhar no mais impenetrável anonimato, no quotidiano de uma repartição perdida do outro lado da América. Em São Francisco, Daniel da Silva cumpre-se imitando o destino de todos: o esquecimento.
Mas se o acaso não o tivesse arrastado na sua imprevisível corrente, talvez ainda hoje cantasse fados e standards enviesados para um circuito de fiéis que acolheriam cada novo álbum com deslumbre e gratidão. E talvez, em vez de Nathaniel Yorke, se chamasse Tom Waits.
Num livro, haverá mérito maior do que este, da realidade o imitar de modo tão decisivo?

[Sérgio Lavos]

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