Se há algum filme puramente deleuziano, este é o filme. INLAND EMPIRE é obrigatório. Esqueçam os coelhos, eles desviam o olhar do que é objectivo, da chave. Esta é a chave: a metamorfose acontece. Esta é a actriz: Laura Dern. Na verdade, é tão estranho que os coelhos falem inglês e passem roupa a ferro como Nikki Grace entender polaco apesar de o não falar. Qual a razão para não nos entregarmos à metamorfose, aos fantasmas, às bruxas (fantástica actriz a Diane Ladd, aqui uma vampírica entrevistadora, em Wild at heart uma verdadeira bruxa com bola de cristal) às maldições e aos feitiços? Qual o motivo para não acreditarmos no poder que um beijo tem para libertar do feitiço, como nos contos de fadas? Não será a própria vida das actrizes um conto de fadas?
No seguimento de Mulholand Drive, David Lynch mostra-se novamente fascinado pela indústria cinematográfica, com os sonhos e os pesadelos inerentes, com a capacidade que um actor tem de se tornar noutra pessoa, no fingimento espacio-temporal que diariamente está presente nos estúdios, quase de um modo esquizofrénico, quando se abre uma porta e logo nos encontramos noutro cenário, noutra época, e assim sucessivamente. Percebe-se bem esta passagem durante o primeiro ensaio do filme realizado por Kingsley Stewart(Jeremy Irons) onde Nikki Grace(Laura Dern) é Susan Blue e Devon Berk(Justin Theroux) é Billy Side: de repente, eles já são Susan e Billy e a metamorfose está completa. A chave está lá desde o início, desde o momento em que a nova vizinha de Nikki Grace lhe fala de um casal de actores que tinha sido brutalmente assassinado e pede-lhe para olhar em frente para ver: se fossem 9:45, já seria amanhã. Desde este olhar até ao final ( "No more blues tomorrows" é o título do filme), passam-se poucos segundos, distendidos na sua duração máxima como só o cinema e a memória têm capacidade de mostrar.
Este é o amanhã desde o início, sempre do outro lado do espelho. Estúdio atrás de estúdio, cenário ao lado de cenário, o filme original, o remake, o filme de Lynch, são mundos paralelos: ainda que de épocas diferentes, eles são contemporâneos, eles encontram-se e alteram-se sem que possam comunicar. Os cenários são temporalmente contemporâneos mas espacialmente descontínuos. Como nas imagens-cristal de Gilles Deleuze, o passado, o presente e o futuro são dados a ver aqui e agora em cada plano sem que o espectador consiga fazer a demarcação. As dimensões temporais são indiscerníveis ainda que distintas. Como acontece na cena do ensaio mas também na cena da sala de cinema quando o filme projectado na sala vazia é o filme que se está a filmar; e no beijo da quebra do feitiço, onde a televisão reproduz as mesmas imagens como numa imagem reflectida em espelho, numa repetição que torna diferente.
Como Lynch afirmou em diversas entrevistas, este é um filme para se sentir por intuição sem se querer reunir as peças do puzzle, porque se trata de uma experiência estética pura, uma experiência pura de tempo. Enquanto experiência estética, INLAND EMPIRE tem lógica e faz sentido porque não interessa o porquê, o que quer dizer. Da mesma maneira que não se pergunta a um pintor o que ele quer dizer porque já o fez com linhas e cores, também não se pergunta a Lynch o que ele quer dizer porque já o fez com imagens.
E se quando uma actriz entrasse na sua personagem, esta se tornasse autónoma e consciente da outra? Então teríamos um filme de David Lynch.
[Susana Viegas]
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