Lata. Se preciso de pensar numa qualidade obrigatória no escritor, é a esta que recorro. Lata para escrever depois de tudo o que foi escrito antes*. Lata para tornar necessário o que à partida será inútil. Lata para começar sabendo-se que a probabilidade de se criar uma nova Ilíada será sensivelmente a mesma que um macaco terá de recriar Hamlet palavra por palavra.
Miguel Real, de quem não terei lido nada até agora - nem os romances históricos, género que é por si só abominável e a antítese da ideia de ficção, pese embora "A Obra ao Negro" e "A Costa de Sirtes", e por aí fora - decidiu escrever, enquanto cheirava o suor das negras regressando a casa no comboio para o Cacém - é todo um programa, mas imaginar o cheiro do suor proletário estimula a minha veia erótico-revolucionária de forma quase incontrolada - um texto sobre o mal. Depois de Auschwitz e de Eichmann e de Hannah Arendt**, partindo da actualidade. Um risco. Mas o colete à prova de bala escolhido - a humildade de se achar um escritor mediano, como afirma no prólogo - poderá salvar Miguel Real. Ainda assim, muita lata.
*Sim, claro, o Adorno e o tal chiché blogosférico: escrever depois de Auschiwtz. Não o repito, ainda que assim caia no exercício retórico despropositado.
**Julgo que apenas uma filósofaª judia amada por um nazi e despeitada por razões que terão sido de raça poderia escrever com propriedade - e, já agora, sem lata - sobre a banalidade do mal.
ªO corrector do blogger não reconhece a palavra "filósofa". A misoginia aparece nos lugares mais improváveis.
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