02/06/09

A ocupação dos dias

A ocupação do tempo é uma coisa séria. Tão séria que desafio quem me vier falar em passatempo a um duelo nas minhas condições: que leve uma resma de palavras cruzadas, sopas de letras, selos e moedas, as suas armas, eu levarei as minhas, um ou dois filmes e alguns livros mais; ou apenas uma folha. Uma folha e uma caneta – dêem-me papel e tinta, e eu em troca oferecerei o mundo (se o mundo quisesse ser oferecido por mim). Não, não é de uma arrogância indesculpável eu achar que ocupo melhor o tempo a ler um livro do que a preencher quadradinhos com números, grelhas com cruzes e borrões; pode não ser melhor, mas é pelo menos mais estético (se até Oscar Wilde falou disso, é porque de ve ser). E mais do que baixar o nível, eu estou a levantar a moral dos filatelistas e numismatas que me lêem – amigos, o vosso passatempo é tão importante como o meu; ambos servem o mesmo propósito, ocupar o tempo. Esse sacana que ri nas minhas costas é assim mesmo: não é exclusivo, aceita ser cheio por qualquer um ou de qualquer coisa. O tempo é como um terreno vazio num município com presidente corrupto (e assim descrevo muito mais de metade das cidades do país), à espera do loteamento que virá. Pode acontecer que seja construído um belo edifício com fins culturais, uma obra de um arquitecto moderno de um ateliê nórdico, uma marca essencial na paisagem urbanística. Mas também pode suceder que seja construído um qualquer monolito de cimento para habitação social que depois é pintado de várias cores para disfarçar o puro horror da desarmonia geométrica. (Bem, não é uma boa comparação; quantas vezes acontece a primeira situação?) Seja como for, a ideia é essa: se do ponto de vista da utilidade do tempo, é tão inútil ler um livro como coleccionar bules de chá, por que razão escolher a primeira opção em detrimento da segunda? Ah, mas a culpa é da sociedade! A sociedade empurra alguns mortais para o abismo da pretensão, para o flagelo da Arte. E pior que um esteta consumado é um criador que julga que, ao escrever, está a enganar o tempo; não há força alguma que consiga transformar a natureza do tempo, que é ser uma espécie de espaço em aberto – não é contradição nem jogo de palavras; se pensar bem, chegará à conclusão que recordar o que passou depende apenas de um movimento (imaginário) no ar, um estender de mão milagroso. Ainda hoje lamento não ter avançado muito na colecção de selos iniciada aos treze anos. Aquela caixa cheia de papel e tinta de algum modo sorri para mim, lá longe no tempo (vêem?) A ocupação do tempo é uma coisa séria, e por isso se tivesse continuado (sem terminar, o coleccionador nunca dá por terminada a sua obra) eu seria alguém acima de qualquer suspeita, não o pretendente a um trono vazio na minha família: aquele que recusou a seriedade da vida e trocou-a pela Arte. Perdi-me.

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