03/06/09

A obscenidade dos comboios

Aquela última sequência da Intriga Internacional, de Hitchcock, quando vemos um comboio a entrar num túnel, imediatamente a seguir ao beijo de Cary Grant e Eva Marie Saint. Não mostrar dizendo tudo. É assim que funcionam os sonhos: sublimam a realidade e substituem-na por símbolos. Freud teria razão. Sonhar com comboios apenas pode ser o óbvio.
Limitemo-nos à vida acordada. O prazer de viajar de comboio associa-se aos mistérios de infância. Recordo que vivia a poucos quilómetros de distância da linha do Oeste, e havia certas noites, quando o silêncio dominava, em que o ruído dos comboios nocturnos se podia ouvir, longe. Convenhamos que, para um adolescente assombrado pela insónia, aquele som vago, de origem incerta, podia ser aterrador. Não acreditava que os comboios pudessem circular à noite. Era tão simples como isso. Mas assustava-me a sério. E punha em andamento a máquina da imaginação criando sonhos inquietos.
Agora, o comboio é um utilitário. Usado diariamente, perde o halo misterioso que tinha. As viagens de longa distância, no entanto, continuamItálico a associar-se ao prazer, mas de outras coisas. Ler um livro numa viagem de Lisboa ao Porto, olhar a paisagem do Oeste, lembrar outros livros, como O Crime no Expresso do Oriente, passados em comboios. A razão do prazer: é como se fosse uma casa em movimento. Nós estamos lá parados, e já nos movemos. Sem darmos por isso, vamos de um ponto ao outro em pouco tempo. Paradoxos da relatividade. (Não nos podemos esquecer que o exemplo habitualmente utilizado para demonstrar a teoria da relatividade restrita tem a ver com andar de comboio. Porquê: a suspensão do tempo num comboio é quase palpável).
Lamento não ter feito o inter-rail, principalmente depois de ver o filme Antes do Amanhecer e o rosto absolutamente belo de Julie Delpy. Mas uma obra de arte é sempre uma possibilidade remota, e não há romantismo que possa salvar dessa miragem estatística que é conhecer alguém como Delpy numa viagem de comboio.
Entre lamentações e declínios, talvez já não acredite em interpretações psicológicas; em comboios e em tudo o resto. Mas o prazer continua a existir. Sublimado ou não.

(Versão melhorada de um texto publicado no Arquivo Fantasma)

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