31/05/07

Música de elevador



A caminho de qualquer coisa.

[Sérgio Lavos]

A ler

Dois textos que vale a pena ler, sobre crítica e critérios editoriais, do André Moura e Cunha. Este e este. Pelas questões que levantam, e por outras que já foram discutidas noutro contexto, merecem o prolongamento da discussão. Assim a preguiça deixe.

[Sérgio Lavos]

30/05/07

Madeleine

Entrei no convento de Pedralbes com a certeza do reconhecimento. Nunca tinha lá estado, mas o conjunto de edifícios de estilo mediterrânico, pedra clara e vegetação antiga, parecia-me familiar, de outro tempo. Em Barcelona, terá sido talvez a maior surpresa. Muitos lugares eu já conhecia de outra viagem, alguns anos antes; outros não, eram uma absoluta novidade. Duas visitas não são suficientes para que a cidade se entranhe. Ao ponto do reconhecimento trazer banalidade a cada sítio. A única cidade que se pode vangloriar de ter mudado a minha infância é Lisboa. Entre dois lugares localizados em dois tempos: uma aldeia derrotada pelo tempo que se passou e uma cidade que não conseguiu ainda substituir em pleno a época do deslumbramento inocente dos primeiros anos. Se, neste momento, há outra cidade que possa concorrer com Lisboa, ela será Barcelona - apesar de Londres. Mas não evito a estranheza, claro. A sensação de que caminho num sonho, a pisar terreno virgem. A certeza de que cada novo caminho me ensinará menos sobre os sítios do que sobre mim próprio. Deve ser essa a maior alegria do viajante.
Mas, o convento de Pedralbes. A subida até surgir a torre à esquerda. As casas, do lado direito, o jardim ao fundo, mergulhado no silêncio de musgo que as pedras de séculos respiram. Entrei e fiz a habitual visita turística, os folhetos, o miúdo a correr, alguma história. Pouca gente, era cedo. O claustro, encerrando as freiras numa dupla prisão, era ensombrado pelo som de uma fonte central - a água é sempre o elemento fundamental nos lugares do silêncio. Em Évora há um claustro semelhante - será na Sé? Mas aquilo que, de imediato, me ocorreu foi uma das sequências do último Padrinho, de Copolla. Quando Al Pacino antecipa o fim do seu poder, a sombra dissolvendo a aura de outrora. Espreitei para dentro de algumas celas, imaginei as freiras devotas entregando a Jesus os seus dias; no convento, a entrega é sobretudo física. Joga-se a salvação eterna, mas isso é apenas um pretexto; o que está em causa é o fardo da matéria terrena. Acredito que quem é devorado pela reclusão monástica o faça em desespero de causa - fugindo às dores do agressivo mundo que rodeia os muros do convento. Michael Corleone refugiado não é uma imagem forçada. Há alguma verdade nesta memória.
Mas Pedralbes é mais do que medo e salvação, histórias contadas para assustar crianças. É um fantasma de um filme. Em "Vertigo", de Hitchcock, Scottie persegue Madeleine até uma missão católica, Dolores. Madeleine entra na capela e um som de órgão ouve-se. Julgamos que alguém toca, no filme. Engano, a música está na banda-sonora. Em Pedralbes, entrei na capela atraído pelo som de música. Da rua, quase não se ouvia. Lá dentro, as ondas sonoras, vindas de algum canto invisível, inundavam o espaço. Sentei-me ali, e imaginei Madeleine a desaparecer por uma porta ao canto do altar. Scottie vem depois, a música perseguindo-o. Nasce da tela - a capela mantém-se enclausurada em silêncio. Scottie sai, a música continua. Na capela do convento de Pedralbes, nenhuma porta se via do lado direito do altar, nenhuma porta desembocava no cemitério onde descansa Carlotta Valdes. A música, entretanto, parou. Imagino que não vejo a freira que saiu de uma sala até aí escondida, imagino que a música de Bernard Hermann continua a soar enquanto o olhar triste de Madeleine se detém na pedra fria do túmulo de Carlota, enquanto Scottie espreita, ali perto. No claustro de Pedralbes, um ritual antigo se repete. No silêncio e na sombra, um homem regressa à sua natureza. E reconhece na obsessão o antídoto para o medo.
Saio para a luz do meio-dia, a cidade permanece. No tempo certo.

[Sérgio Lavos]

Água turva

Uma ideia: o passado embalado, etiquetado, à venda em doses bem medidas, de duração limitada, finitas. Quando chego a casa, retiro da embalagem a coisa; o produto, como se fosse uma droga. alguma ansiedade (muitas vezes simulada), alguma desilusão - disfarçada de tristeza. Coloco o passado na máquina. Começa a rodar, mas não faço a viagem, não regresso. A máquina não recria o passado, não o reproduz, não nada. Limita-se a desbobinar uma outra história. Um simulacro de passado, outro que existe no lugar daquele que se tornou inacessível. Do conforto do presente, observamos o tempo diluir o passado em água turva. Sem a certeza do acontecimento em primeira mão, sem a nostalgia infantil de sabermos que a vontade é suficiente para que tudo se repita. Não temos isso, agora. Uma máquina, apenas. E, à nossa frente, um passado que desconhecemos.

[Sérgio Lavos]

Play

Precisamos do ruído. Que se propague o som no silêncio, que o preencha. Sento-me no silêncio e sinto nele a ausência de alguma coisa. Não há qualquer significado no silêncio; o vazio não precisa de significados. Apenas de sentido. Precisamos de sentido? Pedimos o som, ou as letras entre espaços, alguém a quem não impressiona o silêncio. Não sabemos viver no silêncio - e apenas nele encontramos o sentido. Não sabemos viver na reclusão de um corpo. Contudo, nenhum outro sentido existe para além do corpo. O nosso, o outro.

[Sérgio Lavos]

25/05/07

Zodiac (3)

Não há apenas beleza no mundo. Não há beleza no mundo. O assassino não consegue ver beleza no mundo. A verdadeira culpa não nasce do arrependimento; mas sim da impossibilidade do assassino poder ver a beleza do mundo. Uma coisa mutilada de si própria.

[Sérgio Lavos]

Zodiac (2)

Mas o problema da sociedade é atribuir demasiada importância ao mais comum dos acontecimentos de uma vida: a morte. Se assim não fosse, haveria com certeza menos possibilidade de um qualquer homem perdido de si realizar o seu sonho; a eternidade é sempre possível por momentos. Um momento. A vítima e o seu algoz.

[Sérgio Lavos]

Zodiac

Think Travis Bickle. Um homem pode passar um dia a acumular tensões, uma vida. Um homem pode ser um maravilhoso assassino no mais belo dos mundos: os sonhos. Um homem pode passar os dias a acumular frustrações, a mais violenta de todas a que não permite ao homem poder concretizar os seus sonhos. Deus quer, o homem sonha, a morte por vezes nasce.

[Sérgio Lavos]

23/05/07

Fanáticos

Não é impossível um escritor tornar-se político - já aconteceu; mais difícil é um bom escritor tornar-se um bom político (veja-se o caso de Mario Vargas Llosa). Pode ser mais comum um mau escritor se transformar num bom político (pense-se em Vaclav Havel). E, de qualquer modo, na maior parte das vezes as aspirações políticas são mínimas ou desprovidas de bom senso. A passagem de José Saramago pela política activa demonstra o caso de forma exemplar.
O problema tem que ver com a natureza das duas funções. O político é, quase sempre, um ser desprovido de imaginação que compensa esta falta com uma tendência para a mentira, a falsidade ou a grandiloquência, muitas vezes ocorrendo separadamente e, nos casos mais sintomáticos, juntas. Pior ainda, o político confunde mentira com imaginação e inclui-se muitas vezes nos seus delírios mitómanos, achando que o poder que lhe foi delegado lhe confere carta branca para entrar na História. Todo o político sonha com a eternidade. Quase todos apenas conseguem notoriedade ou, nos piores casos, enriquecimento ilícito, durante algum tempo.
O escritor é alguém que usa a criatividade para produzir novas imagens, nunca mente. Está suficientemente protegido para poder praticar o seu ofício sem sobressaltos. Sabe que quem lê não espera mais do que outra realidade, diferente daquela onde vive. Diferente de uma realidade onde a mentira e a hipocrisia são indissociáveis da socialização. Neste mundo, o político move-se como uma enguia entre as mãos.
Amos Oz, escritor israelita, no livro do Público que saiu há uns tempos, "Contra o Fanatismo", traça uma linha entre escritor e político, definindo um modo de intervenção que tanto se aproxima do engagement clássico como se afasta - Oz nunca toma partido por nenhum dos lados, israelita ou palestiniano. O mais difícil de conseguir, a neutralidade absoluta; principalmente porque Oz é israelita e de esquerda - facilmente podia descambar para um dos lados. Os três ensaios do livro são extraordinários, e mais exemplares se tornam quando chegamos ao fim a achar que nenhuma das sugestões avançadas por Oz serão sequer pensadas pelos líderes políticos a quem ele apela. Oz, como outros intelectuais israelitas e palestinianos, labora no fracasso. Porque pertence a uma espécie diferente dos líderes políticos - os tais homens sem imaginação, reduzidos à insignificância de poderem mandar no presente. E de saberem que nunca irão transformar o futuro.

[Sérgio Lavos]

Touradas

Não há apenas uma maneira de pegar o touro pelos cornos. Mas apenas uma é a correcta. De frente, sempre. Qualquer outra hipótese ou é inviável ou um risco, tanto para integridade corporal como para a reserva diária de ego - arriscamos o ridículo. Tourear é coisa de macho. Não me venham com conversas de collantzinho entalado no rego; homem que admite expor-se desse modo não duvida da sua masculinidade. E se alguém duvida, alto. Que enfrentar um falo pontigudo, assim, de ventre empinado, não é para qualquer um. Por isso é que as mulheres se limitam a cavalgar de pau na mão. Longe da besta. Da parelha de chifres. Da tentação que é safar-se do assalto da dupla varonil exposta do touro. E o sangue. Espirrando por todo o lado, ao ritmo frenético das palmas. Não me venham com conversas de roupas de garridas cores, dourados coriscando ao sol, rosas e fuscias manchados de sangue e suor. É de macho. Esquisitices? Tragam um forcado.

[Sérgio Lavos]

Meditatio

Quando penso com atenção nos curiosos hábitos dos cães
Inclino-me a achar
Que o Homem é o animal superior.

Quando penso nos curiosos hábitos do Homem,
Meu amigo, confesso, fico baralhado.

Ezra Pound


(versão de)

[Sérgio Lavos]

18/05/07

Paisagem com queda de Ícaro

De acordo com Brueghel
quando Ícaro caiu
era primavera

um agricultor lavrava
o campo
todo o esplendor

do ano acordara
e crepitava
à

beira-mar
preocupado
consigo mesmo

suando ao sol
que derretia
a cera das asas

acidentalmente
ao largo da costa
aconteceu

um mergulho surdo
era
Ícaro que se afogava

William Carlos Williams

(versão de )

[Sérgio Lavos]

17/05/07

Arte e imanência (2)

Se quisermos ser pessimistas (e banais) podemos afirmar que a arte é sobrevalorizada. Recontextualizar significa quase sempre valorizar o que, no seu contexto de partida, pouca importância tem. E recontextualizar significa também, quase sempre, teorizar sobre a arte produzida, desse modo atribuindo séries de intenções, de sentido, ao acto do criador. Temos de dar esse passo, claro, caso contrário a arte deixa de ter qualquer razão para existir. O acto de descodificação da possibilidade, isto é, da eventualidade do criador ter pensado de determinado modo quando estava a produzir a obra, é por si só um acto criativo. O crítico e o teórico (eles existem, não é?, mesmo que não necessariamente por esta ordem) intervêm no processo criativo unindo as pontas soltas desse processo. Falam de escolas, de sentido, de alusões, de intertextualidade e, evidente, de contexto. A questão será: até que ponto precisa a arte da carga teórica que lhe sucede? Falsa questão, por uma simples razão: esta carga teórica surge sempre como ferramenta, voluntária ou não, do criador. Mesmo as escolas que menos dependem da conceptualização e se gabam de produzir arte da forma mais aleatória ou inconsciente possível - pense-se no surrealismo ou no expressionismo abstracto de Pollock - não se conseguem desprender do lastro da teorização. A desconstrução da arte, que no fundo é o fundamento principal do modernismo ( e do que se lhe seguiu, seja o que for que se lhe queira chamar) necessita sempre do reconhecimento de um passado. A "construção" (aqui entendida como o oposto de desconstrução), ainda que não exista formalmente, acaba por intervir no processo criativo; quem desconstrói conhece aqueles que o antecederam, estudou-os, amou-os e por fim odiou-os, mata o pai e julgar criar uma coisa completamente nova no seu lugar. A arte deixou de se interessar pela imitação e vive da re-criação, colou-se à vida e integrou-se no quotidiano. Desistiu da transcendência porque se deu conta que os mestres não podiam ser sobrepujados. Apenas repudiados e destruídos. E, no melhor dos mundos, esquecidos.

[Sérgio Lavos]

14/05/07

No Direction Home

Gosto tanto de algumas unanimidades como desaprovo outras. Não cultivo a atitude de ser sempre do contra nem cedo sempre às imposições da moda. O meu meio-termo é o meu gosto, e apenas erro quando não sei do que falo – e admitir isto não diminui o pecado.

O meu filme preferido de entre os que Martin Scorcese dirigiu é “No Direction Home: Bob Dylan” – e o segundo bem poderia ser “A Minha Viagem em Itália”. E arriscaria ainda um terceiro: "The Last Walz”. Arrisco deitar fora “O Touro Enraivecido” e principalmente a sua melhor obra de ficção, “Taxi Driver”. Guardando os seus documentários religiosamente.

Que Scorcese consiga ser melhor quando fala das suas paixões não deixa de ser surpreendente. Ou pensando bem, não é. Porque Scorcese é um meticuloso cinéfilo que enriquece a sua obra com o conhecimento adquirido na obra de outros. É claro que existe um modo scorcesiano de fazer cinema – aquela maneira de acumular tensões sem nunca mostrar verdadeiramente um núcleo dramático que justifique essas tensões; e isto é uma qualidade. Quando Travis Bickle, em "Taxi Driver", finalmente cede aos demónios interiores, o ritmo do filme torna-se decrescente, um balão esvaziando-se até que nada reste. A violência não é gráfica nem explosiva; é um esgar no rosto de Robert de Niro ou uma improvisação em frente ao espelho. Nada acontece apenas uma vez. Uma continuidade nos actos da personagem de Bickle imita as flutuações constantes da cidade de Nova Iorque, o seu pulso. Tudo é normal na cidade que nunca dorme – e em "Nova Iorque Fora de Horas" confirma-se em tom de burlesco a loucura encenada de "Taxi Driver".

Falando de um filme, torna-se fácil ganhar-lhe apego. Regressemos portanto a "No Direction Home", fabuloso testemunho dedicado a alguém que já está além da História – da sua injustiça suprema, dos seus ciclos inevitáveis de vida e morte. E acaba por ser tudo menos curioso que Bob Dylan, uma das mais perfeitas encarnações do Homem americano, tenha sobrevivido ao peso de o ser persistindo numa reclusão casmurra, encerrado numa misantropia que é o espelho do seu génio. O documentário de Scorcese esquiva-se a grandes teorias – sempre uma armadilha – e concentra-se nos pormenores. As entrevistas perigosas, no fio da navalha; o relato dos músicos que o acompanharam; a reacção do público conservador da música folk aos concertos electrificados da digressão de "Bringing It All Back Home" – o seu álbum esquizofrénico; a zanga com Joan Baez.

O mistério de Dylan fascina por ter criado uma obra que configura o espírito de um tempo. E Dylan apenas se tornou um mito quando se rebelou contra as suas raízes e se reinventou enquanto músico. Em 1965, Dylan previu o fim da utopia do movimento hippie? Não será assim, apenas prosseguiu o caminho de uma outra utopia; no caso, criativa, espaço de singularidade artística. O seu maior feito – que ele, como se vê em "No Direction Home", acaba por desvalorizar em termos de importância simbólica. Scorcese capta o percurso feito de desvio e transgressão, focando o seu olhar nos pormenores, seja uma entrevista ao músico em que este é provocado por um jornalista de intenções duvidosas, seja no relato feito no tempo presente, em que Dylan se expõe revelando as sombras desconhecidas da sua história.

Ao conhecermos o músico na intimidade das histórias durante tanto tempo guardadas, compreendemos melhor a razão das mudanças que ocorreram nos últimos 40 anos na América. Mérito para Martin Scorcese. Partindo do particular para o universal, tornando a micro-história pista de leitura para a grande História, sobretudo asseverando a importância da cultura pop para o entendimento pleno de uma sociedade, Scorcese atingiu a perfeição. Que tenha assim sucedido em forma de documentário, não me parece que venha mal ao mundo. O cinema também pode servir como testemunha de um tempo que vai passando. Para sempre.


[Sérgio Lavos]

13/05/07

Arte e imanência (1)

A história do violinista famoso que decide tocar para uma multidão de transeuntes em hora de ponta não é exactamente original, mas prova qualquer coisa. Há aquele video do Badly Drawn Boy, aqui há uns anos, em que ele aparece a tocar na rua perante a ausência de reconhecimento de quem passa. Julgo que o video testava sobretudo a notoriedade do músico, e neste aspecto distinguia-se da experiência de Joshua Bell, incentivada pelo "Washington Post". O que prova ao certo, então? Havia uma resposta, e procurei-a nos meus apontamentos da última viagem a Londres.
No mesmo museu que expõe uma réplica de "The Fountain", de Marcel Duchamp, supremo cliché da arte auto-reflexiva, gente de todo o lado formava fila para descer por um dos tubos que tinham sido montados a partir de cada um dos três pisos do museu até ao solo. Aí está, pensei ao entrar, o aspecto lúdico atraindo público para a arte, o carácter utilitário destes anglo-saxónicos nunca pára de me surpreender. Engano meu, claro. A Tate Modern, quando abriu as portas em 2000, cumpria logo à partida os requisitos dessa função utilitária da arte. Aproveitando o espaço de uma central energética do século XIX abandonada, ali à beira do Tamisa, a arte ocupou o seu devido lugar na história. Houve a preocupação de não criar uma obra de arte arquitectónica do zero para receber o espólio de arte contemporânea da Tate. O edifício já existia, e de um modo completamente orgânico, foi reformulado por Herzog e de Meuron para servir um objectivo diferente do inicial. A função ecológica da intervenção também não é desprezável, claro; nos dias que correm, o caos urbanístico deixou de ser aceitável, e existe uma cada vez maior ligação entre sensibilidade ecológica e planeamento urbanístico.
No interior do edifício, a obra de Carsten Höller, o escorrega, perdia a intensidade de obra-de-arte (duvido que a maior parte dos visitantes que pagaram para descer por ali soubessem que aquilo era uma instalação artística) para se reduzir a um objecto do quotidiano, exclusivamente utilitário. Parecia ser apenas um extra na oferta do museu: para além de arte, diversão.
A ideia não está muito distante do uso que uma criança pode dar a muitas instalações ou performances modernas. Uma escultura de Rui Chafes pode ser um banco ou uma construção lúdica; um trabalho colocado numa rotunda para os lados da antiga Expo um escorrega com múltiplas pistas (acontecimentos presenciados na primeira pessoa). Por isso, não admira que apenas algumas crianças tenham parado para ouvir um pouco de Bach interpretado por um dos mais conhecidos violinistas do mundo, no metro, em plena hora de ponta. A música, para uma criança, perde a importância que qualquer melómano com o ouvido treinado lhe atribui, e reduz-se a simples acontecimento inserido na corrente contínua do quotidiano. Belo e fugaz, decerto, mas apenas mais uma experiência, sem qualquer transcendência inerente. Como o escorrega de Höller. Como o urinol de Duchamp. Como deveria ser a Guernica de Picasso. Ou o fuzilamento pintado por Goya. Ou não será assim?

[Sérgio Lavos]

11/05/07

Pré-qualquer coisa

Alguém saberá em que época é que estamos? Já passou por nós a doença do pós-modernismo, ou estaremos ainda lentamente a recuperar das suas consequências? Fará sentido falar de movimentos artísticos ou culturais quando a característica mais determinante para a sua definição deixou de existir com os novos meios de comunicação de que dispomos? O enquadramento de um tempo deixou de ser necessário, porque o tempo relativizou-se de uma forma absoluta. Quando deixámos de sentir debaixo de nós o espaço seguro em que nos apoiávamos, o tempo começou a perder o sentido. As ideias circulam a partir do suporte material em que nascem, são independentes da fatuidade e da perversão de um corpo. Encontramo-nos distantes da tertúlia que precisa de um espaço físico onde se reunir; os modernistas encontravam-se em cafés e discutiam novos conceitos e o modo como o futuro podia ser definido por eles. A arte era um acto colectivista, revolucionário principalmente na sua faceta de comunhão entre indivíduos, tentativa de transformar um conjunto de diferenças em semelhanças, como um rolo compressor destruindo o que havia antes. O espaço agora é virtual, velha canção sem importância, e as ideias são apenas veículo de expressão de egos isolados em ilhas afastadas do seu vizinho mais próximo. Não faz sentido falar em pós-modernismo, porque se perdeu o mínimo sentido de unidade possível para a formação de um corpo de ideias. Não há conjunto, movimento, coesão, lógica. Manifestações avulsas, dispersão, exibicionismo fálico. A cura para o pós-modernismo foi a destruição de qualquer fio condutor para uma cultura. A possível solução é o refúgio em tempos que julgamos terem existido. Em vez de pós-modernidade, pré-qualquer coisa menos isto. Menos isto.

[Sérgio Lavos]

10/05/07

Vonnegut e a arte

Contaram um total de vinte quadros abatidos naquela operação de limpeza. Alguns expressionistas abstractos, claro. Os mais importantes. De Kooning. Pollock. Terry Kitchen. E, principalmente, Sarkis Karabekian. A grande tela vazia do fim da vida. Estava lá. Alguns críticos não resistiram à possibilidade de ironia. Entre uma e outra homenagem ao pintor arménio, a referência mais ou menos velada ao genocídio. Alguns dez milhões de seres humanos. O que é uma vintena de quadros, perto disso? Retirados da parede do museu, carregados para uma alta pira ao largo, incendiados. Havia quem gritasse no meio da multidão. Apoiavam a operação. A tela arde melhor do que muitos livros, madeira. Tinta correndo por entre as pessoas, figuras desfeitas atirando o seu corpo em direcção ao céu. Imagine-se o ar de espanto de Karabekian, lá de cima, ao ver o desaparecimento final de algumas das suas obras. Subindo ao seu encontro. Como espíritos reencontrando o seu lugar, entre os anjos. Belo cortejo de almas mortas, conduzido pelo seu pastor, venerável sátiro da tragédia humana. Kurt Vonnegut entre os mortos, sem ironia. Milhões de massacrados e algumas telas no seu lugar.

[Sérgio Lavos]

09/05/07

Regressos

"Reparaste no modo como a luz incide no alpendre, cruzando o verão, regressada de outro tempo?"
"A luz é sempre igual, repete-se no seu regresso."
"Mas o calor, os pássaros vibrando com o calor que inflama o ar, o corpo intenso."
"A mesma luz, o mesmo calor, o mesmo cansaço."
"Mas o vento, nunca é o mesmo. O movimento das folhas nunca se repete. Tudo é novo."
"Todos os regressos se repetem. A luz dissipa a sombra do tempo. A sua permanência maldita. E apenas isso acontece. Apenas isso."

[Sérgio Lavos]

Lynchland (2)

Como acontece na vida, um filme precisa de pormenores para se definir, e desse modo definir o espectador. Pode ser um frame apenas, uma imagem composta por um conjunto de frames, uma sequência inteira, um diálogo, o que não é visível nem audível, o que sobrevive nas entrelinhas. O que luta para permanecer secreto, apenas intuído, nunca inteiramente revelado. Talvez por isso o cinema de David Lynch continue a ser cativante, apesar de Lynch testar, de filme para filme, os limites da paciência (e do bom-senso) de quem resiste. É um cinema de resistência, portanto, obra-de-arte entricheirada contra os limites da razão, desafiando a lógica mas sempre plena de sentido. É claro que a frase anterior não é um paradoxo. A seta do tempo em Lynch toma caminhos estranhos, a unidade espacial muitas vezes é apenas memória da harmonia clássica. Os limites da interpretação são estendidos até ao infinito; qualquer resposta é válida. No entanto, sabemos que Lynch pensa de maneira diversa da nossa. Por isso recusamos muitas vezes o exercício de indulgência a que ele nos submete, sem sequer nos darmos conta que a indulgência acaba por ser o nosso próprio erro. Remetemos Lynch para a gaveta dos casos clínicos, esquecendo o ensinamento dos grandes criadores do passado: a arte apenas se torna disruptora, de vanguarda, se deixar para trás o lastro, não só do passado, mas principalmente do presente. A vanguarda não é um exercício provocatório; é o reconhecimento de que o passado já não interessa e que apenas através da novidade, da experimentação, se pode criar um novo presente. E este movimento tectónico, de produção de novas margens para a arte, apenas se torna possível se, por um momento, abandonarmos todo o sentido; para que tudo faça novamente sentido - e para que a teoria tenha de novo o seu dia.
Os pormenores. Em "INLAND EMPIRE", Lynch remete o espectador para aqueles que o precederam. No filme dentro do filme, há outro filme que respira: "A Dupla Vida de Verónique", de Krzysztof Kieslowski. Em Cracóvia, Weronika (Irène Jacob) corre pela rua fora com um daqueles que sorrisos que extravasam o real limitado de um filme. Antes de vislumbrar o seu futuro. A mesma mulher que transborda de felicidade (como se costuma dizer) também corre pelas ruas de um cenário de filme em Hollywood que acaba por não o ser (é Lodz, onde o filme de Lynch foi filmado). Será Nikki Grace, Susan Blue ou Verónique? Uma obra que atravessa os seus limites e cruza o passado de forma tão fulgurante desliga-se completamente do real e dele prescinde. Alimenta-se dela própria, existe independentemente do seu criador, do mundo em que foi criada. Não é cinema já, é vida.

[Sérgio Lavos]

04/05/07

LCD Soundsystem

A melhor música de 1982 está no novo álbum dos LCD Soundsystem e chama-se "Someone Great". Um belo cruzamento entre Kraftwerk e Human League, complementado por uma letra que contradiz o ambiente da música, introduzindo um elemento lírico surpreendente - a mulher que parte, os estilhaços da relação por todo o lado. James Murphy a cantar uma canção, digamos, romântica, também acaba por ser inusitadamente interessante. Como se fôssemos curtir a depressão para uma pista de dança com uma bola de espelhos, sozinhos no nosso desamparo muito 80's. O melhor álbum deste ano é "Sound of Silver", e esta a melhor música do álbum. Se não chegou ainda aos tops do mundo inteiro, então os 80 foram definitivamente melhores que a década em que esta música foi composta. Basta carregar no play aqui mesmo ao lado.

I wish that we could talk about it,
But there, that's the problem.
With someone new I could have started,
Too late, for beginnings.
The little things that made me harassed,
Are gone, in a moment.
I miss the way we used to argue,
Locked, in your basement.

I wake up and the phone is ringing,
Surprised, as it's early.
And that should be the perfect warning,
That something's, a problem.
To tell the truth I saw it coming,
The way, you were breathing.
But nothing can prepare you for it,
The voice, on the other, end.

The worst is all the lovely weather,
I'm sad, it's not raining.
The coffee isn't even bitter,
Because, what's the difference?
There's all the work that needs to be done,
It's late, for revision.
There's all the time and all the planning,
And songs, to be finished.

And it keeps coming,
And it keeps coming,
And it keeps coming,
Till the day it stops
(Repeat x3)
And it keeps coming,
(Repeat x7)
Till the day it stops.

I wish that we could talk about it,
But there, that's the problem.
With someone new I could have started,
Too late, for beginnings.
You're smaller than my wife imagined,
Surprised, you were human.
There shouldn't be this ring of silence,
But what, are the options?

When someone great is gone.
(Repeat x8)

We're safe, for the moment.
Saved,
For the moment

[Sérgio Lavos]

Encurralados

Fumar é uma questão de liberdade. Fazer amor também, para todos os efeitos. Qualquer que seja a variação, tudo é permitido dentro de portas. Houve tempos em que se proibia a sodomia, mas nenhum país desenvolvido se atreve ainda a reprimir actos de natureza exclusivamente pessoal. O que se quer fazer, e já foi feito em muitos países, é equiparar o acto de fumar a actos de natureza sexual. O caminho inverso já foi percorrido antes; pense-se no charuto de Monica Lewinski. As alusões ao falo que envolvem a actividade são evidentes desde antes de Freud. Legisle-se contra a perversão, portanto. Anseio pelo prazer que retirarei de fumar quando a lei for aprovada. O que antes era natural, partilhado, social, mundano, passa a ser anti-natura, individual, egoísta, privado. Viva a perversão do fumo! Libertinos de todo o mundo (ocidental), rejubilai! Mais um prazer proibido (e culpado) se acrescenta à lista de bizarrias que temos à nossa disposição. Fumar a seguir ao sexo deixará de ser um momento de calmia depois da tempestade. Um prazer ameno. De cigarro na boca, seremos como Sade seduzindo e pervertendo as mentes mais puras.
Não há nenhuma diferença entre um puritano sexual e um proibicionista. A sua natureza assemelha-se. A ditadura do bem-estar começa a tomar conta do mundo. Queremos mulheres com a silhueta de raparigas de 13 anos, músculos tonificados aos 50 e uma morte limpa, sem sofrimento. Estimulamos a investigação científica e queremos encontrar a cura para todas as doenças (como se fosse possível morrer saudável) e ao mesmo tempo especulamos sobre a eutanásia e deixamos os velhos abandonados à sua tristeza em lares habitados por sombras de vivos. Merece mais atenção um pobre fumador que apenas deseja poder viver com o seu vício sem ser importunado do que um velho abandonado pela família como um cão.
Vamos sendo encurralados pela lei do mais forte. A democracia que protege as minorias esquece-se por vezes dos direitos das maiorias. Não desejo mais saúde nem bem-estar; apenas o direito de poder fazer o que quero, desde que não prejudique os outros. Mesmo que os outros me queiram prejudicar. A minha liberdade.

[Sérgio Lavos]

03/05/07

A meio do fim

Será necessário esperar pelo fim de um livro para se poder escrever sobre ele? Imagino eu que já terei lido muitas recensões escritas por críticos que nem se deram ao trabalho de passar das primeiras páginas. Não importa. Não é esse o ponto. O que eu gostaria de saber é em que momento é que uma obra se define; em que altura é que dizemos: aqui está um trabalho de génio, ou uma mediana parição, e não acrescentarei obra medíocre porque essas ou se evitam à partida, guiados que somos pelo instinto da má literatura, ou abandonam-se ao fim de poucas linhas, que a paciência e o tempo não se devem gastar com quem não merece. Não falo da ambiência, do mood da história. Entramos em Kerouac ao som de Charlie Parker e por ali ficamos durante muitos anos; deixamos que Kafka nos invada a casa e nunca mais nos livramos da sombra que o perseguia - desde as primeiras palavras. Não é isso. Que autoridade nos concederá o escritor para avaliarmos do risco da obra? Cumpre o prometido, consegue transmitir ao leitor as premissas básicas do pensamento do autor? De quanto engano precisamos nós, traição mesmo, para entendermos na perfeição o alcance das palavras que lemos? É aqui, precisamente aqui, que traçamos a linha: a partir daqui gosto deste livro. Uma frase, um diálogo, um sorriso a meio de uma obra séria, um atropelo de angústia inesperado na mais límpida metáfora da página. Há uma certa fluidez que se observa, ou entranhar-se-á a obra em nós aos repelões, cordilheira infinita que se repercute no tempo que prolonga a última página? A dez páginas do fim, imagino abandonar um livro ao seu destino, que de resto nunca deixa de ser completamente independente da minha vontade. Até aí, a tal sensação que se diria plena (não fosse este adjectivo tão usado em livros de auto-ajuda); quero chegar ao fim. Fico por ali, antes do autor decidir como acabar a história. Acabará o livro ali, a dez centímetros da vitória? Sem qualquer tipo de alusão sexual, em que ponto atinge a obra o seu êxtase?
A cinco páginas do fim de "Na Praia de Chesil", o último de Ian McEwan, é isto que me ocorre dizer.

[Sérgio Lavos]

01/05/07

Imagens

O que realmente me apoquenta é não poder utilizar todos os recursos que tenho à disposição quando escrevo. Assuntos que não domino. Palavras que ainda não aprendi, ou que simplesmente esqueci. Metáforas que nunca usarei por me faltar o conhecimento técnico para isso. Ainda há pouco escrevi: traço contínuo. Nem sei bem o que isso é, mas imagino. Uma estrada perdida, pedida de empréstimo a Lynch, claro, a imagem. Um traço descontínuo que se prolonga arrastado pela velocidade de um automóvel. Conduzir, não sei, nunca aprendi, mas imagino. Vejo imagens. Leio imagens. Sal Paradise guiando contra a paisagem americana. Valeu o nome de um filho, ter lido Kerouac demasiado tarde na vida. Valeu a pena. Não conduzo, por isso muitas vezes não vou a tempo de me desviar das inconveniências da vida. Ou da língua. As mesmas curvas e contracurvas que tenho de evitar, guinando nos limites, condução perigosa de quem nunca tirou a carta. Já foi utlizada, esta ideia. Escasseiam os recursos. Evito o embate. Sigo viagem, mesmo sem saber ler o mapa. Mas sei onde é a tua casa.

[Sérgio Lavos]

Off

Na minha pior fase Mexia nunca poderia escrever: dar sempre o pior do meu melhor. Não sei qual o pior do meu melhor porque não sei qual o meu melhor. Apenas sei que a constância do meu pior é comparável à uniformidade do meu melhor. Eu explico: nunca farei psicanálise porque o conceito, à partida, está errado. Nunca serei capaz de analisar concretamente e de maneira fria qual dos meus defeitos menos se assemelha a uma qualidade e qual das minhas qualidades é mais unanimemente considerada defeito. Falar dos meus problemas entedia-me. Pior, falar dos meus problemas esvazia-os de qualquer gravidade que possam ter. Rio-me dos meus problemas. Na cara deles. Se não levo a sério os meus problemas, nunca poderei saber ao certo qual o meu pior, qual o meu melhor. Traço contínuo. Linha plana. Como uma máquina de hospital depois do fim. Pensando bem, a imagem não podia estar mais correcta - e ser mais idiota: a rectidão dos meus estados de espírito é tão chata como uma vida recém perdida. Off-line. O melhor do meu pior é quase sempre inofensivo. Provavelmente, nem problemas a sério terei. Sonhos, apenas.

[Sérgio Lavos]

Sue Lyon

Entre o sublime e o ridículo: o desejo.

[Sérgio Lavos]

Uma lolita

O rosto lúbrico de Jimmy Mason enrolando os lábios em redor da língua de Shakespeare, olhar saltando entre a mãe e Lolita, presente e futuro num loop de segundos - e a arma, atrás, sobre a cabeça, pousada sobre a mesa. O olho de Kubrick espreitava de um buraco qualquer no passado. E Nabokov ria-se com a seriedade da coisa. Professor Humbert, relatando a sua queda a partir de uma notícia sensacionalista de jornal, resignara-se à amargura de ter perdido tudo. Lolita. Lola. Como a Lola de Jarmush, Lolita diminuta convidando Bill Murray para a dança burlesca. Uma casa perdida nos subúrbios. Jardins e jardins repetindo-se em perfeita harmonia, vivendas brancas a perder de vista, os vícios privados embalados pela doce canção do dinheiro. Deus abençoe a classe média. Uma visita aos pobres de espírito. Mason apaixonado pelas vidas dos simples, terna Lolita perdida nos olhos do professor Humbert. Kubrick espreitando para a vida privada, escapelizando as emoções até restar apenas o osso. Desprovido de sangue, implacável. Aquela imagem entre presente e futuro, a câmara dançando sobre a indecisão de Humbert, um lapso momentâneo da emoção.

[Sérgio Lavos]