Talvez a Feira do Livro mereça nova visita, menos apressada e sem ter a agenda preenchida, mas o que vi foi o suficiente para confirmar receios e opiniões alheias: está pior, cada vez pior. Arrisco: a Feira já não é a feira que conheci e de que aprendi a gostar quando era um estudante com pouco dinheiro nos bolsos e muito por ler. Vamos lá ceder um pouco ao saudosismo, como quase toda a gente que fala ou escreve sobre a Feira: ainda temos farturas e subidas e descidas, é certo, mas já não temos a igualdade democrática dos stands a cair da tripeça. Havia grupos, sim, mas cada barraca valia por si só; as ilhas dos grandes grupos presumivelmente trouxeram mais visitantes - carece de confirmação isto, e as informações de gente do meio indiciam o contrário - mas transformaram a celebração anual do livro num colorido carnaval aproveitado pelos diferentes entre iguais para "escoar" os seus "produtos". Os mastodontes editoriais que pespegam barras anti-furto à entrada do condomínio de luxo e espalham seguranças de maus modos pelo "espaço" limitaram-se a abrutalhadamente tomar conta de mais um "canal de venda", igual a qualquer hipermercado ou cadeia de livrarias. Os gestores de produto que começaram a dirigir as editoras, alegres substitutos dos editores à antiga, pensam apenas no que estão formatados para pensar: o máximo lucro com o menor custo. Por isso, que se espalhe pelo mundo a mensagem colorida, folclórica, jovial desta gente. Os livros são um pormenor, a literatura qualquer coisa de que eles ouviram falar na televisão. E o cúmulo deste admirável mundo novo é a lombriga gigante plantada no meio do recinto, a brilhante invenção do arquitecto pós-moderno contratado pelo antigo administrador de um banco, bibliófilo cujos méritos muita gente se apressou a reconhecer, o túnel do hiperespaço babélico que suga tudo em redor para um vórtice fantasmagórico que faz lembrar vagamente um lugar onde vivem livros. Que o responsável pelo aborto arquitectónico seja presidente da associação que organiza o acontecimento, um detalhe um pouco mais do que interessante. A rédea soltou-se há alguns anos, e por isso aqui chegámos.
Quando me tornei livreiro e deixei de frequentar com o mesmo amor a Feira - é verdade que a profissão esvazia um pouco o romantismo sacralizado que rodeia o universo dos livros - este período era sempre o mais temido, pela previsível quebra nas vendas. Mas nunca deixei de o frequentar, nunca deixei de passear por ali, na esperança de encontrar um livro que ainda não conhecesse. De ano para ano, a vontade esmorece. E este, apesar das surpresas e dos encontros inesperados que irei recordar com o amor de outros tempos - vá lá, ainda se pode ter prazer em conhecermos um escritor que admiramos, pedir um autógrafo, dizer a coisa errada no momento certo - confirma o pior dos meus receios. Por mim, pense-se a sério na proposta do Pedro Piedade Marques: duas feiras, uma para os três grandes grupos (claro que o terceiro grande grupo é uma fraude, a quota de mercado que preenche nem de perto nem de longe é tão alta como foi afirmado, mas enfim, não vale a pena contradizer o que foi soprado para os meios de comunicação social) e outra para os editores que querem apenas vender livros, maus ou bons, novos ou raridades. Livros, livros, não "produtos". É assim tão difícil perceber a diferença?
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