Um livro classificado como romance que parece uma reportagem jornalística; ou um relato autobiográfico; ou um ensaio sobre a memória e a sua falibilidade; um livro de viagens que conta histórias reais e inventadas, no qual as personagens existem na realidade mas com outro nome. Sobretudo, o prazer da leitura, frase a frase, a fluidez da escrita, a capacidade de cruzar diferentes tempos e criar um objecto que tem tanto de modernidade como o travo de uma língua portuguesa clássica cultivada por muito poucos na literatura portuguesa contemporânea.
Nada de pós-modernismo, uso de minúsculas, diálogos que não se distinguem do resto do texto, personagens que parecem todas ter a mesma voz, a voz do narrador, do autor, o tal do silêncio entre as palavras tornado piada literária, caricatura involuntária. La Coca, de J. Rentes de Carvalho, é mais do que isto. O narrador regressado a Portugal, anos 90, e uma viagem pelo Minho e pela Galiza que tem como intenção inicial investigar o tráfico na região, intenção que o avanço da narrativa acaba por sabotar. O narrador – convirá esquecer que o autor Rentes de Carvalho nasceu ali perto, em Gaia (filho de pais transmontanos), o Porto à espreita, e durante a adolescência foi viver com o pai para a fronteira norte entre Portugal e Espanha, o rio Minho pelo meio – reencontra amigos de infância, névoas de um passado em tudo diferente da memória que ele tem deste, filhos de conhecidos, estradas de infância e paisagens que se tornaram desconhecidas ou desapareceram. Encontra-se também com os homens do tráfico. Antigos contrabandistas de tabaco e bebida convertidos ao novo deus do haxixe, da cocaína e da heroína, os heróis de outra era, portugueses que negam ter alguma coisa a ver com essa actividade fronteiriça, galegos que fogem ao contacto do jornalista que vem da Holanda. A viagem é uma sabotagem da ideia inicial. Começa no presente mas acaba num passado irrecuperável. À crueza do contrabando de droga, da violência, as mortes e a prisão, é contraposto o romantismo dos antigos barqueiros que de noite atravessavam o Minho trazendo pacotes de maços de cigarros americanos. O episódio delicioso do pacto entre a guarda fiscal e os contrabandistas que existia no passado foi substituído por histórias de traições entre traficantes, acordos obscuros entre a polícia e os maiores chefes, delações de rivais, relatos exultantes da ascensão e queda de criminosos sem escrúpulos que acabam traídos por companheiros no crime.
A descoberta de um mundo novo que a memória tem dificuldade em aceitar, leva a que o passado seja tratado à luz distorcida de um ideal que, provavelmente, nunca terá existido; ou, mais provável, um ideal de vida imaginado. A memória é imaginação, sempre: recriamos o passado como um conjunto de imagens cuja substância é impossível de tocar. Teremos sempre de acreditar no que recordamos: a nostalgia é isto mesmo. E o narrador de La Coca ou, ouso dizer, Rentes de Carvalho – saí da leitura do livro convencido que pouco ou nada distingue os dois, e a prova desta convicção é assumir que, no limite, ficção e memória podem ser as duas faces da mesma moeda – não foge às suas armadilhas. Enredados na mesma teia em que ele caiu, chegamos ao fim igualmente perdidos. E isso é bom; muito, muito bom.
(La Coca, de J. Rentes de Carvalho, ed. Quetzal).
- Texto publicado no Arrastão -
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