04/05/11

Barcelona

Enquanto José Mourinho luta, perto dos cinquenta anos, com o seu passado, eu recordo uma crónica de Enrique Vila-Matas em que ele fala da sua amizade com jogadores do Barcelona e do interesse destes pelos livros. Nos anos 90, Guardiola mostrava elegância dentro e fora do campo, discutindo literatura com o escritor catalão. Nadal, o tio de Rafael, era também um leitor regular, e o amor pelo Barcelona de Vila-Matas vivia também destas histórias paralelas, prolongamentos dos títulos conquistados com Bobby Robson e Louis van Gaal, da classe pura de jogadores como Stoichckov, Romário, mais tarde Rivaldo e Figo, Ivan de la Peña. O Barcelona, entre meados dos anos 90 e 2009, era a minha equipa espanhola, e para essa afeição não era certamente pouco importante a política. O clube autonomista, tradicionalmente ligado à esquerda, o clube dos românticos e de quem gostava de ver jogar sem pensar em coisas comezinhas como resultados ou títulos. O Barcelona de Rijkard era algo diferente, mas era um prazer, à velha maneira holandesa de jogar à bola. Uma máquina de circulação de bola, e o génio de Ronaldinho Gaúcho a servir a Henry e Eto'o. Um prazer recompensado com um título europeu e o melhor futebol do mundo. Depois, veio o gentleman Guardiola, o intelectual, cordato, correcto, um homem da casa. E Messi cresceu, e tornou-se o olho do furacão morno em que se transformou o futebol do Barcelona. Jogos com mais de 70% de posse de bola, toques curtos desde a defesa, progressão andebolística, o último passe de génio de Iniesta ou Xavi a libertar um qualquer para marcar. Resumindo, um tédio perfeccionista, um aborrecimento descomunal que apenas conquista a admiração sincera de quem estudou demasiado as minudências do jogo (pense-se em Luís Freitas Lobo, e sabe-se do que eu estou a falar) e se esqueceu daquilo que leva os adeptos ao estádio:a emoção, a incerteza, a imprevisibilidade. A equipa barcelonesca é um robô repetitivo, um deep blue imbatível que, com a anuência simpática do mundo e o gesto cortês dos árbitros que vai apanhando, derrota os outros adversários, humanos e imperfeitos. Mesmo o melhor de todos eles, Mourinho. Sempre a mesma táctica, o mesmo plano de jogo, a narrativa perfeita. O mito nasceu - a equipa com o melhor jogador de sempre, quem sabe se a melhor equipa de sempre. Como é possível ter acontecido o desastre da época passada, quando o Inter foi capaz de derrubar o mito? Nunca, e por isso não poderá voltar a acontecer. Os ídolos têm pés de barro, e Mourinho mais do que provou isto, no Chelsea, no Inter, no Real Madrid. A cagança dos heróis do futebol convenceu toda a gente a olhar para o lado perante o espectáculo miserável de jogadores a atirarem-se para o chão ao mínimo toque. Busquets é o bebé chorão que toda a mãe sonha ter, Daniel Alves passou do segundo melhor lateral direito do mundo, um jogador excepcional, a fiteiro incorrigível, provocador e briguento, e sempre perdoado pelos árbitros. Salvam-se alguns: Iniesta, Xavi. E depois, Messi, o extraterrestre, o monstro alimentado pela equipa e pelo resto do mundo. Os consecutivos falhanços do jogador argentino na selecção, nos antípodas do deus Maradona, são um indício claro da importância do sistema de jogo e da qualidade dos restantes companheiros no Barcelona. Maradona carregou às costas uma equipa, um país, uma nação ferida por uma guerra perdida contra um país europeu. E em Itália, voltou a fazer mesmo, contrariando possibilidades estatísticas e a influência dos poderes da FIFA que não queriam ver repetir-se uma vitória da Argentina. Messi, para já, habita outro reino, um Olimpo inferior ao deus maior.

Por isso, meu caro Vila-Matas, lamento ter deixado de gostar do Barcelona. Pesaroso, lembro a minha primeira visita à cidade catalã e a romaria ao Camp Nou. Aquela grandiosidade, a popular mística, era verdadeira. Barcelona vivia o clube e eu vivia com a cidade quando via os jogos do campeonado espanhol, e sentia um gozo enorme sabendo que Guardiola era leitor de Borges e de Kafka, e que um dos meus escritores preferidos se sentava com os jogadores naquele café da Praça Catalunha de que agora não quero recordar o nome a falar de futebol e livros. Uma narrativa belíssima, uma história inatacável. Sei que voltarei a gostar do clube, mas entretanto chegou Mourinho, o engenhoso construtor de narrativas, o treinador pós-moderno, o espelho de uma vaidade que lhe vai roubando a juventude. O Real joga à defesa, é certo, mas jogará o Barcelona ao ataque? Talvez não interesse, mas sei que o plano de Mourinho para estas meias-finais perdidas foi boicotado pelos dois árbitros. A defesa era apenas a primeira parte da história. Mas Daniel Alves decidiu voar e cair deitado no chão a queixar-se de umas dores que nunca existiram. Imperdoável. Vergonhoso. E tudo se desmoronou. Esqueço a finta maravilhosa de Afelay e o monumento de Messi no segundo? Nunca. Mas a beleza desses dois momentos já tinha sido obliterada pelo erro anterior. A emoção foi-se. Ficou a aborrecida perfeição da máquina futebolística barcelonesca. A inevitabilidade da vitória. E isso não é poesia. Eu sei que compreendes. Falamos daqui a uns tempos.

- Publicado também no Arrastão

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