O cronista do quotidiano atrever-se-à a tudo para preencher o papel em branco. Procura assunto nos jornais, recorda acontecimentos que julga ter esquecido - ou que esqueceu, e pensa ainda lembrá-los -, pega em frases deixadas a meio e recomeça-as, apaga e volta a tentar. Nada o fará desistir da sua função. Metódico, é pior que um parasita - alimenta-se da vida dos outros e nada oferece em troca. Sobretudo, arrisca-se a chegar a um dia em que irá escrever sobre a dor de dentes que não tem, ou pior, sobre o tema que não encontra para a sua crónica do quotidiano.
Eu, por outro lado, tenho mesmo uma dor de dentes e por isso posso afirmar, como se fosse um político, que falo verdade quando escrevo que tenho uma dor de dentes. Mortifica, desgasta, transforma o pensamento numa papa mole e sem préstimo. Não há comparação que resista à dor de dentes, metáfora que sobreviva à puta da realidade. O dente metafórico seria uma bela invenção - o que impedisse de perder alguns minutos numa reflexão inútil sobre o dente real. Nada original. Talvez não tenha uma dor de dentes porque o dente que me doía é uma sombra vaga na cratera deixada pelo dentista. Poderia falar dos meus movimentos intestinais, como o poeta concretista de Chesterton. Nem mais, nem menos. O justo.
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