07/09/10

Dançar com Zurlini


- A menina dança?
- Sim, obrigado.

Roberta pousa o cigarro e o copo e dança com Carlo ao som do jazz de Mario Nascimbene. Dança, dançam os dois, dançam e sabem que o fio que os une – o desejo, o desejo – supera a tragédia que os aproximou. O marido de Roberta morreu na guerra, Carlo é um burguês entediado, namorisca com Rosanna e espera que a sua vida passe ao largo do tempo, da guerra, e a juventude seja eterna.
Tudo começa na praia, Verão, um grupo alegre banhando-se na água cálida do Mediterrâneo; estamos em Rimini, a estância onde nasceu Fellini, o nome grande do cinema italiano que está nos antípodas de Valerio Zurlini. Os lugares que os aproxima são também território de afastamento – a cidade que serviu a Fellini de motor da memória, inspiração, berço de uma criatividade ostensiva, estrepitosa e freudiana a ponto de se tornar fastidiosa, serve de mapa da intimidade a Zurlini, cada ponto cardeal nó de um desejo perseguido por Carlo e Roberta: a praia, onde a intrusa ao grupo, a mulher quase balzaquiana que trata de uma criança, perto dos jovens, desperta pela primeira vez a atenção de Carlo, a praia sobrevoada por um avião alemão desviado da sua rota, a intromissão inicial de realidade no idílio do grupo, a praia onde mais tarde Carlo e Roberta são descobertos, noite escura, por um polícia que relembra a Carlo a fuga à guerra – belíssima sequência, pela sombra, plena de silêncio. Princípio, meio e fim naquele lugar fora do espaço – uma língua de areia junto ao mar, o tecido urbano a dois passos – e fora do tempo, suspenso na beleza dos actores, na sua eternidade fátua.
O marcado contraste entre o tempo da acção – a Segunda Guerra Mundial – e o tempo vivido primeiro pelo grupo de jovens e depois pelos amantes, é o mote do filme, tema repetido por Zurlini ao longo da sua restante obra. A passagem dos anos ou traz a desilusão ou a queda, e à ingenuidade e à ilusão da juventude sucedem o cinismo ou a amargura. Em O Deserto dos Tártaros, derradeiro filme de Zurlini - adapta a obra homónima de Dino Buzzati - assistimos ao mesmo processo: Drogo (Jacques Perrin) é um jovem militar colocado num forte situado na fronteira de um país – imaginário, e esta é outra chave que o realizador nos oferece: a paisagem irreal, as cores do deserto, os tons da fortificação, o isolamento, vão criando um espaço fora do mundo e do tempo. Há quantos anos esperam os soldados pelos Tártaros? E Drogo, o jovem inocente que busca a glória da vida militar, saberá que o futuro apenas lhe trará a saciedade inútil da repetição? A intenção de Buzzati tem a perfeita ilustração no rosto de Perrin: a jovialidade dá lugar à crispação, a beleza à velhice prematura, a esperança (palavra tão falsa) à resignação e à queda. Não precisamos de reafirmar os evidentes paralelismos com a vida, a sua estrutura e o esquema simples da existência: esperar, esperar sempre por algo indefinido que acaba por não acontecer, a revelação de um sentido. A chegada dos Tártaros é o sonho possível.
Regressamos ao filme mais antigo, intimista – a câmara flui com languidez pelos corpos dos actores, aproxima-se, os breve close-ups de uns dedos tocando noutros dedos, dos olhos de Carlo procurando os olhos de Roberta enquanto a câmara dança com eles. Esta proximidade é como uma melodia de fundo no filme que serve de tela para outros temas: a guerra, a luta de classes, a nobreza. Mas o tema retorna de forma obrigatória – Um Verão Violento é um melodrama, uma história de amor que consegue cristalizar a beleza mundana de Eleonora Rossi Drago (Roberta) e a fome de vida de Jean-Louis Trintignant (Carlo). Na cena crucial do filme, Rosanna (Jacqueline Sassard), a pretendente traída, segue os dois amantes – já o são, antes de sequer se tocarem – e observa da varanda o primeiro beijo. Espantosa sequência, espantosa sobretudo pelas escolhas de Zurlini: no primeiro momento de amor, um plano afastado, em suave picado, e estamos no lugar de Rossana, a despeitada. Estamos, e sempre estivemos, mas não tínhamos ainda percebido. E depois, um ou dois segundos depois, o primeiro corte e descobrimo-nos no lugar dos amantes que percebem estar a ser observados. Contra-picado suave e vemos o espanto de Rossana, a confirmação da suspeita, mas também o fim do feitiço – Carlo e Roberta separam-se, o tempo retoma o seu andamento, e eles sabem que transgrediram.
O Deserto dos Tártaros, apesar de ser uma co-produção de vários países europeus, com um elenco multinacional e o peso de uma grande produção – Zurlini teve vários problemas para terminar o filme – não deixa de ter um nítido cunho de autor. Os espaços do forte são fechados, claustrofóbicos: a intimidade, que em ambiente masculino toma a forma de camaradagem, é forçada pela situação - não só o aquartelamento mas sobretudo a pressão do espaço exterior, amplo, até ao limiar do horizonte. As muralhas do forte raras vezes são transpostas – apenas do lado de cá para entrarem novos soldados e saírem para novas colocações, e uma ou outra breve incursão em território inimigo. Mas estas incursões são vistas como perigosas, o que sublinha a sensação de território de ninguém onde o forte está implantado. O deserto não é apenas onde está o inimigo, é a miragem de liberdade experienciada pelos soldados; entre a morte e a espera, entre os ataque dos Tártaros e a abdicação, apenas pode haver uma escolha, uma vontade, o destino de qualquer homem de guerra, mas o tempo passa e esse desejo nunca é satisfeito. Estamos enclausurados com os soldados no forte, a caminho de nada.
Se a guerra é uma ideia vaga, algo que aconteceu no passado e pode voltar a acontecer no futuro – e entretanto o filme mantém-se nessa zona suspensa entre duas inexistências – em O Deserto dos Tártaros, em Um Verão Violento ela vai-se infiltrando no tecido da realidade (uma realidade sonhada, já sabemos), através de pequenos sinais, sintomas de mal – o avião alemão na praia, notícias da guerra na rádio durante a festa (e a música pára, a alegria cessa), o polícia que questiona Carlo – até tomar conta de tudo, da vontade das personagens e do rumo do filme. Quando os dois começam a encontrar-se regularmente e o caso torna-se quase familiar, Carlo dá-se conta da tragédia que ensombra Roberta: o marido morreu na guerra. Os seus hábitos burgueses, hedonistas e despreocupados, tornam-se um terrível defeito, não sabemos se aos olhos de Roberta, mas certamente para si: o confronto com o mártir de guerra, um fantasma (inventado?) acaba por levar Carlo à descoberta da idade adulta. Lentamente a urgência de uma decisão, a pressão da violência, transforma a natureza do amor sentido pelos dois. Carlo tem de se alistar, Roberta teme nova tragédia, e tudo acaba por culminar na fabulosa sequência final, quando o comboio em que Carlo e Roberta seguem é bombardeado. O génio de Zurlini evidencia-se: a montagem acelera a acção, apressa a fuga dos amantes e serve na perfeição o cenário de batalha, mas a câmara nem por um momento se afasta dos dois, captando-os no momento decisivo, quando Carlo tem de escolher entre a guerra e a fuga. Ele sabe que é um jogo perdido à partida: se partir pode morrer, se ficar é preso e perde Roberta. Mas o futuro não existe para além do filme. Ele deixa partir Roberta e assim conquista-a, sem condições.
Valerio Zurlini é o grande realizador italiano esquecido – da mesma linhagem de Antonioni, mas menos vanguardista, menos interessado no mecanismo do cinema e mais em fazer nascer emoções no espectador. O melodrama é o seu território, mas as suas armas não são aquelas que associamos ao género clássico de Hollywood. Não se trata de grandes histórias de amor filmadas em Technicolor, artificiais (muitas vezes artificiosas), tear-jerckers inesquecíveis com actrizes em modo de sobre-representação e cenários coloridos e mais ou menos camp. Também estamos distantes do neo-realismo italiano, de Vittorio de Sicca ou do primeiro Rossellini. Os sentimentos são discretos, as emoções contidas, a câmara subjectiva quanto baste e quase sempre próxima das personagens. Num filme de grande orçamento como O Deserto dos Tártaros, Zurlini esvazia a solenidade da paisagem e entretém-se a filmar as relações entre os soldados, a registar a evolução existencial de Drogo. Parte do quadro maior e aproxima o olho cinematográfico do pormenor, enclausurando os actores, para depois filmar o deserto em planos que sublinham a sua solidão. O efeito contrário é sentido em Um Verão Violento: da banalidade fútil de um grupo de jovens em férias e de um casal que daí nasce – o quadro intimista – ao grande plano da guerra que desde o início se ouve em fundo. A história privada de Carlo e Roberta – o tempo fora do tempo - apenas ganha importância quando o ruído da tragédia pública se torna demasiado forte para ser ignorado – o regresso a um tempo real – o Verão de 1943, o ano em que os Aliados invadem a Sicília e o Sul de Itália, o Verão violento do título. Se esta violência se refere à paixão vivida pelos amantes ou à guerra, pouco importa, e a intenção de Zurlini certamente seria atribuir os dois sentidos à palavra.
Zurlini dança connosco como Carlo dança com Roberta: a sua câmara seduz, como seduzem todas as coisas belas e perecíveis, a eternidade perdida das personagens. Enlevados pelo elegante movimento da dança, só nos resta a entrega, tão perdidos como Eleonora Rossi Drago nos braços de Jean-Louis Trintignant. Aquele primeiro beijo…

(Texto publicado inicialmente na revista Alice.)

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