É interessante que Luís Miguel Oliveira, no texto sobre Valsa com Bashir para o Ipsilon, se questione a determinada altura sobre as "picuinhices", defeitos apontados ao filme (às quais ele cola o envergonhado "primado da estética"), e avance na recomendação falando das outras virtudes da obra de Ari Folman; a saber, a ética.
Parece-me que, infelizmente, o filme de Folman será sempre actual; uma obra sobre um acontecimento passado que ecoa o presente de forma dramática. A evocação do envolvimento dos soldados israelitas na infame invasão do Líbano em 1982 e nos consequentes massacres nos campos de refugiados de Sabra e Chatila sublinha a dimensão trágica da actual invasão de Gaza. A história nem sempre se repete como farsa - e os únicos farsantes nesta história parecem ser os que insistem na bondade das intenções de Israel, o velho conto do exército libertador em acção de auto-defesa, que no fundo trará um futuro melhor aos pobres palestinianos controlados pelo diabólico Hamas. O que é extraordinário em tudo isto é a ineficácia da realidade perante as opiniões formadas desta gente: os mortos árabes são números, e a nostalgia estalinista é a nova moda da estação.
A realidade, essa, é relatada do modo mais eficaz possível no filme israelita: através de um trabalho de recuperação da memória. E a analogia é evidente: a memória do narrador, o próprio Folman, apagada por força de um intenso trauma, é também a memória de Israel, o país que esqueceu o sofrimento dos seus pais fundadores, o horror da Shoah. É esta a maior virtude do filme - e a passagem simbólica da animação, do sonho, para a realidade, carrega consigo um peso que parece ter sido esquecido pelos generais que comandam a guerra a partir de quintas, distantes das fronteiras que são diariamente cruzadas por rockets terroristas, e da frente de batalha, onde rapazes e raparigas obrigatoriamente incorporados lutam, sem saber muito bem porquê ou para quê (o desígnio maior, a manutenção de um estado encurralado, é mais uma fraudulenta manipulação de quem manda - qual será o verdadeiro perigo que Israel corre, tal é a desproporção de forças em relação aos estados vizinhos?).
Se estamos no campo da ética, falta ao filme o salto derradeiro, a tal empatia pelo sofrimento do outro. No fundo, quem incorpora o mal maior, lembrado por uma personagem - os campos de concentração nazis - são não-judeus. As cruzes dos cristãos falangistas pintadas nos carros de combate e nas roupas dos carrascos são reminiscentes das suásticas nazis - e isso não pode ser perdoado a Folman; no último momento, a culpa é descartada, como se não tivesse sido Israel a invadir o Líbano, como se não tivesse havido uma conivência activa no massacre.
Quem é o agressor, quem o agredido? Não haverá questão tão clara.
[Sérgio Lavos]
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