11/11/07

A nudez dos mortos

O assunto tem regresso recorrente. Ou, para sermos mais certeiros, nunca deixa de estar na ordem do dia. Ontem, morreu Norman Mailer - e voltou-se a falar disso, nos blogues e na nota biográfica de Pedro Mexia para o Público, por exemplo.
Mailer morreu, mas nem por isso as manchas da sua vida foram apagadas. Enfrentem isso, quem gosta dele. Eu não ligo, e apenas me lembro disso quando a veia tablóide de gente mais ou menos séria nas suas intenções sobressai de modo evidente. O escritor que morreu era misógino, violento, virulento. E, ah, era liberal - o que contradiz a ideia de superioridade moral da esquerda. Mailer esfaqueou uma das seis mulheres com quem foi casado. O horror para as feministas - alguns livros queimados à mistura. A obra, que não morreu - por enquanto - também era tudo isto. Mulheres (no geral) e homens (de estômago mais sensível), façam um favor aos vossos escrúpulos - não o leiam. Ou melhor, leiam-no - seria doce a vingança depois do túmulo (e escrevo isto sem calafrios).
Filipe Guerra ensaiou uma interessante aproximação ao problema, depois de uma revelação recente, a prova pública de que Pepetela e Luandino Vieira colaboraram activamente numa qualquer purga de contornos estalinistas, algures em Angola. Ignoro a escrita de Pepetela. Confesso que fiquei desapontado com Luandino Vieira. Mas não por razões de gosto. Talvez pela estética da figura, pela aura mítica do escritor recluso que recusa os louros que o mundo lhe oferece. Enquanto imaginei Luandino recusando o prémio como consequência do apelo da solidão, de uma entrega ao esquecimento, a sua obra pareceu-me prenhe de um apelo irresistível. Li mais do que conhecia, escrevi sobre isso, achei na atitude do escritor toda a motivação para cultivar um gosto pela obra. Resumindo, antes de gostar do que Luandino escreve, gostei da figura que imaginei que ele fosse. Um homem bom? Não é essa a questão, parecia-me um homem verdadeiro. E agora, o arrepio? Filipe Guerra acerta: não porque Luandino seja um crápula (como o era Céline, ou Ezra Pound), um falso ingénuo (como Sartre ou Saramago) ou simplesmente alguém com o coração no sítio certo mas as mãos no sítio errado (como Mailer ou Hemingway ou Roth). A razão é simples: Luandino foi um funcionário ao serviço da barbárie, e isso torna-o cúmplice de gente sem imaginação, sem desejo de liberdade. E a obra? Admiro-a exactamente com a mesma intensidade que admirava antes.
Temos os nossos mitos, as figuras que julgamos ser tão perfeitas como a obra que criam. Porquê? Procuramos na arte o reconhecimento de nós próprios, enquanto parte de um grupo, enquanto essência real de uma ideia: ser humano. Projectamos nos artistas que amamos aquilo que gostaríamos de ser, o arquétipo. Mas eles, sabemos bem, insistem em desiludir-nos. Persistem em ser humanos. Como nós. Ao contrário da obra produzida - essa é que pode aspirar a ser perfeita e imortal.

[Sérgio Lavos]

1 comentário:

tlpg disse...

É uma tese recorrente, mas não deixa de estar excelente.

Um abraço,
Tiago.