Um homem em tempos confessava-me que perdera o dom de coleccionar os dias ao perder-se nas fracções em que os dias se desdobram, e que, desde esse dia em diante, passara a falar por metáforas. Por exemplo: se dizia "está sol" pensava num livro que lera em criança, ou se dizia "lamento que não tenha percebido" na verdade incentivava o seu interlocutor a prosseguir na conversa. Era normal que poucos entendessem o sentido das palavras, a direcção do discurso, a coerência das frases. O desconcerto chegava a ser redundante, à força da repetição e da implacável lógica da imagem que se escondia no simples enunciado das coisas. Certo dia, a uma pergunta que eu lhe fiz acerca da razão porque estava ali naquele momento, desatou a contar sem parar, não queria parar, não conseguia parar, abrindo e fechando a boca numa velocidade crescente, número atrás de número atrás de número até à intangibilidade absoluta, até o encadeamento de números se tornar um emaranhando de sons, roucos, altos e baixos, graves e agudos, uma série de gritos, culminando num silêncio final fulgurante; o rosto vermelho e desfigurado, uma careta insuportável como a de um sátiro. Nesse momento, decidi cortar relações com ele. Nunca mais a partir daí consegui pensar em metáforas. Ainda hoje quando vejo o sol apenas penso em amarelo. Nunca em luz.
(Como estamos no Verão, dedico-me às reprises, textos de outras andanças. Está calor.)
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