A Underwood 315 foi a minha primeira máquina de escrita. Foi a única mecânica que me pertenceu - usei outras máquinas que não eram minhas. O meu pai levou-me a uma loja de electrodomésticos e eu escolhi-a . Gostei do azul suave, das linhas elegantes. Ou talvez não*. Talvez tenha gostado apenas da expectativa; chegar a casa, abrir a caixa (havia uma?), pousar a máquina em cima da mesa do meu quarto, pegar numa folha em branco e começar bater com os dedos nas teclas. O tique-taque irregular das letras a bater no papel, o polegar e o indicador puxando atrás o rolo, os xxxxxxxx sobre as palavras que se querem apagar. Olhar para a máquina azul e branca, exposta ao lado de outras máquinas que acabei por recusar: um momento de felicidade. De que me esqueci**, e nem escrevendo sobre esse momento - agora num teclado que imprime as letras num ecrã que faz doer os olhos - o consigo focar.
Há alguns anos, numa visita a casa dos meus pais, reencontrei a máquina coberta de pó, sujidade e ferrugem, no meio de um monte de lixo na antiga adega. Ao lado, uma caixa cheia de papéis antigos, jornais amarrotados, alguns livros sem préstimo, meus e não só. E a máquina, repetindo desde aquele dia em que foi comprada, o som das teclas a bater no papel. No silêncio ouvia-se o que tinha escrito: e tive mais certeza daquilo que senti na compra, da sensação de espera, do que daquilo que veio depois, tudo o que nasceu dela. Transformei a máquina numa imagem. Como gostaria de ter a imagem do momento em que a máquina veio parar às minhas mãos.
*Para dizer a verdade, é difícil, quanto recordo acontecimento passado, lembrar-me exactamente do que pensei, do que senti. Ou, dito de outro modo, não consigo ter a certeza se aquilo que no presente julgo ter sentido corresponde à realidade do que aconteceu. Imagino, romanticamente. Espero, para determinada situação, ter pensado a coisa certa. Mas não consigo escapar ao vórtice egoísta que anima o ser humano, e quase de certeza que aquilo que julgo ter pensado é apenas uma intenção, um esforço da imaginação.
**E foram tantos. De que restam apenas vagas recordações, alusões, sonhos que codificam a memória, a enovelam num emaranhado de símbolos e segundas leituras, remissões com destinatário desconhecido. Sei que tive esses momentos mas não consigo precisar a emoção sentida. O esquecimento é uma porta aberta para um tempo que pode não ter existido.
- As máquinas de escrever já não são fabricadas, a última fábrica fechou há uns meses na Índia. São agora objecto de museu, destituídas da sua função inicial. Esquecimento. -
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