As ondas eram para se chamar mariposas. O que levou Virginia Woolf a mudar de ideias não terá sido uma questão estética, mas sim metafísica, o que torna o episódio ainda mais fascinante. A nocturnidade preferida por esse provisório animal não se adequava ao tom diurno e solar que a escritora queria dar ao seu romance. E a metáfora das ondas acabou por ser uma segunda escolha que se revelou perfeita. Os versos de Shakespeare na origem de tudo: Like as the waves make towards the pebbled shore/So do our minutes hasten to their end. As ondas avançando em direcção à praia de seixos, e os minutos que as imitam, devagar. A metáfora continua ao longo do soneto: as ondas que vão se substituindo umas às outras; o tempo, imparável, o salto breve de uma palavra que vai desde o nascimento à maturidade, a juventude consumida, a velhice. Os dois últimos versos redimem – ou querem redimir - a voracidade da entropia: And yet, to times, in hope, my verse shall stand/Praising thy worth, despite his cruel hand. O verso do poeta levantar-se-á contra a mão cruel do tempo, em forma de elegia amorosa. O amor não derrota o tempo, refira-se; a poesia, sim, talvez, e a amada a quem o verso se destina.
Virginia Woolf leva também longe a metáfora, e no romance dá voz a seis crianças –a que se juntará uma sétima, ausente da narração, essencial para se compreender a obra. O experimentalismo da escritora nunca terá ido tão longe: um fluxo contínuo de consciência, em que as crianças vão falando à vez, ao longo dos anos, toma conta de tudo. Não há hierarquia no avanço da história ou uma ideia romantizada da infância. Cada tempo tem a sua importância. Mas a acumulação dos minutos levará sempre à inevitável melancolia da passagem do tempo. O movimento perpétuo do mar a despenhar-se na praia é ilusório: haverá um fim. A imagem da mariposa aproximando-se da luz para morrer ou esta ilusão de eternidade, das ondas debatendo-se na areia, que ilusão deveremos abraçar?
Mas as mariposas vieram de outro lado. Irromperam do décimo capítulo do livro de W. G. Sebald, The Rings of Saturn. Para ser mais preciso, de três páginas deste capítulo, a 274, a 275 e a 276, na edição inglesa da Vintage. Não deveriam ter sido mariposas, mas sim bichos-da-seda. A descrição do ciclo de vida destes insectos ensaiada por Sebald é um daqueles momentos em que julgamos que a literatura é superior à vida: perfeita. Sabemos como os bichos-da-seda vivem: para se alimentar enquanto larvas, e depois de renascerem borboletas, para propagar a espécie. Morrem pouco depois desta certeza. E é tudo. Resumir desta maneira o mistério da vida – parece que não há qualquer mistério, não parece? – é um triste esforço. As palavras de Sebald, em duas páginas (mais duas linhas na página seguinte) contam uma história diferente deste seco resumo, são o sopro metafísico que atribui sentido à mecânica natural. A mesma vontade metafórica de Virginia Woolf ou de William Shakespeare. Muito mais do que capturar a beleza das borboletas (como fazia o sádico Nabokov – e apenas a sua genialidade o desculpa).
A tal metamorfose – das palavras. Descrevemos a Natureza com as palavras mais simples, as imagens mais práticas. Vem um poeta, um romancista – ou um ensaísta – e tira-nos o fôlego com uma facilidade que nos deixa ao mesmo tempo com uma terrível inveja – quase tão terrível como o ciúme de Iago – e sofrendo de um amor fulminante; pior, platónico. O nosso amor pelas palavras dos poetas é um conforto maldito: acreditamos num sentido que não existe. O ciclo do bicho-da-seda, resultado de milhões de anos de evolução, transforma-se pela mão do escritor, em outra coisa; que não queremos – nem devemos – nomear.
Até ao final do capítulo, Sebald continua a falar do comércio de seda na Europa, desde as primeiras trocas comerciais com a China – antes de Marco Polo, antes da rota da seda que Alessandro Baricco recorda na sua belíssima novela Seda – até ao século XX, quando a Alemanha nazi decidiu incentivar a produção do país. Terá sido, aliás, graças a este incentivo, que criar bichos-da-seda se tornou um hábito entre as crianças – e não deixa de ser tragicamente irónico que um passatempo de crianças, tão pueril como as brincadeiras que as personagens de Virginia Woolf têm na praia, tenha aparecido em tais condições.
Nunca criei bichos-da-seda, porque nasci no campo. O contacto com os ciclos da Natureza aconteceu porque tinha de acontecer. Quando vinha a Primavera, as borboletas despiam-se dos casulos amarelos que tinha estado todo o Inverno presos aos muros da casa e começavam a voar. Pensando bem, talvez não soubesse na altura como era curta, a vida delas. Nunca tive ninguém que me ensinasse o realismo da existência – e ainda bem. Sabia que as mariposas, castanhas, desprovidas, na aparência, de beleza, eram sinal de morte, como as corujas ou os corvos. No dorso de algumas mariposas, pode-se ver o desenho de uma caveira, o que ajudava à superstição. A beleza do voo suicida procurada por Virginia Woolf era um momento distante no futuro. O peso de toda a leveza do voo das borboletas (Kundera certamente perdoará o uso desta antítese) – gostaria tanto, por vezes, de não o sentir.
Procuro então as palavras que anestesiem. Ou que imunizem. As palavras de Sebald, no final, ao evocar um episódio contado por Sir Thomas Browne no seu livro, Pseudodoxia Epidemica – e Browne é a glosa que conduz todo o capítulo. Quando vivia na Holanda, Browne tinha assistido a um costume que entretanto deixara de ter lugar: quando alguém morria, panos de seda eram colocados a tapar espelhos e quadros que retratassem paisagens ou pessoas ou aquilo que a Natureza dá, para que a alma, na sua última viagem, não se distraísse com o seu próprio reflexo ou com as delícias que deixava para trás.
Os livros de Sebald são catálogos de ruínas. Materiais: os lugares por onde o narrador se passeia, procurando vestígios de um passado derrotado; espirituais: tradições perdidas, ideias nunca mais pensadas; e imaginárias: as ruínas de uma Europa esquecida, antigo centro da razão, foco do mundo, uma Europa que se derrotou a si própria com duas guerras mundiais e com o progressivo esquecimento de uma antiga cultura. As paisagens do escritor são o espelho desta ruína espiritual; moral. Da imagem da passagem do tempo enquanto movimento contínuo – as ondas de Virginia Woolf – ao terror da imagem fixa da ruína, uma imagem na qual o passado sobrevive como resto, escolho sem vida. Nas pedras de uma cidade engolida pelas águas na costa de Inglaterra repousam as vidas de quem lá habitou; as ondas foram derrotando a pedra, com labor e paciência, persistência. Quando o narrador de Sebald lá chegar, sabemos da história apenas por alguns fantasmas visíveis: um farol numa encosta, pedras mergulhadas na água. A cidade que na época medieval tinha sido um dos principais portos ingleses, centro de produção de arenque, eixo de um vaivém comercial importantíssimo. Tudo memória, sepultada pelas ondas que imitam o tempo.
Mas as palavras; as palavras que trazem instantes, como peixes numa rede, e os emaranham. A literatura contraria esse cruel avanço do tempo, a ladainha das ondas na praia, a inevitabilidade do voo das mariposas contra a luz. Em Sebald, o tempo contrai-se e distende-se ao ritmo da memória, e acontecimentos de diferentes anos sucedem-se, cruzam-se, confundem-se, referem-se, apontam, coexistem. O tempo sai “fora dos seus eixos” (Shakespeare), mas mantém uma coerência interna, uma estrutura suportada pela memória. Não há antes e depois nos livros – mesmo, e sobretudo, quando parece haver. Uma vitória? Uma ilusão, como o amor de que fala o verso de Shakespeare, que nasce quando o verso do poeta o manda nascer. Frágil ilusão: à verdadeira ilusão, sem memória, é impossível regressar; as crianças de Virginia Woolf perderam-se no avanço do mar.
- Texto publicado inicialmente na revista Alice -