Há várias razões para acreditar que Luís Miguel Queirós é o melhor jornalista literário a escrever em jornais portugueses; a mais recente foi o texto que saiu há uns dias no P2 sobre Nabokov e o romance póstumo agora publicado, literatura em peças para montar, frases e parágrafos aos pedaços.
The Original of Laura é um conjunto de fragmentos que muito dificilmente se poderia chamar de romance, mas ainda assim é melhor do que se não houvesse nada; para o diabo com a vontade do escritor morto. Se respeitássemos os mortos não teríamos Kafka e Pessoa, e isso, mais do que à humanidade como um todo, iria deixar-me bastante aborrecido, isto se eu pudesse ter conhecimento de que tinha sido escrito algo que poderia fazer-me acreditar que a minha vida iria mudar com tal leitura. Falamos de hipóteses, claro; a mudança é uma questão de perspectiva, e parece que na realidade não existe - já repararam como Obama passou de Messias a traidor em menos de um ano ou o Benfica regrediu de "temível adversário" a uma equipa que qualquer um que não seja designado sucessor de Mourinho consegue ultrapassar se jogar com pelo menos três trincos (a cacofonia é propositada) e um guarda-redes em fase de hiper-ventilação vitaminada? Muda-se apenas para que se possa voltar à forma inicial - a frase truncada e retirada de uma obra literária mais citada dos últimos tempos, ou então eu ando a ler as coisas erradas.
Lamento dizer, mas ainda não comecei a ler 2666, que estava para ser escrito "&&&. Conheço várias vítimas de tijolos literários - qual a percentagem de pessoas que comprou a Ilíada, e a Odisseia e o D. Quixote, que realmente terá chegado ao fim da leitura? Mas quem poderá duvidar de que o uso dado a estes livros - elegante decoração das estantes Billy do quarto e da sala - concorre menos para a felicidade mundial do que efectivamente terem sido lidos? Como tal, não me atrevo. Já fui derrotado uma vez pelo Ulisses, duas pelo Proust e três pela Montanha Mágica - e confesso que, apesar do empolgamento sentido ao ler Moby Dick, prefiro de Melville o fabuloso Bartleby, mais do que herói literário, exemplo que deveria seguir com mais persistência.
Desse modo, e querendo preencher a minha quota parte de livros da Quetzal, a editora renascida das cinzas pela mão de Francisco José Viegas, peguei num livro da extinta editora Escritor - Ernestina, de Rentes de Carvalho (é claro que o livro foi agora reeditado pela Quetzal), e é difícil perceber como o público leitor português ainda não descobriu este escritor de estalo. O exílio leva ao esquecimento, uma lástima - ele é mais lido na Holanda do que por cá, mas o Lobo Antunes é mais lido por cá do que na Holanda e, como toda a gente sabe, os holandeses são muito mais cultos, educados e estudados do que nós - para bom entendedor...
Um relato autobiográfico que regressa a uma infância passada entre uma aldeia de Trás-os-Montes e o Porto, nas primeiras décadas do século passado - é este o resumo do livro, mas não mostra nada; o que vale a pena, em Rentes de Carvalho, é a cadência da frase, a riqueza do léxico, o vivo ritmo narrativo que nos transporta a um tempo irrecuperável.
Sabemos que nada dura para sempre - Nabokov não podia fazer nada com os papéis deixados para serem usados como peças de um puzzle (pelo menos o livro, editado pela Alfred Knopf, é um objecto fascinante, um achado em termos de grafismo) - e a glória é transitória, mas por vezes seria justo reconhecer a competência dos competentes em vez de se comprar (e comprar, e comprar) o produto da incompetência dos incompetentes. O ideal seria que o tempo trouxesse justiça ao escritor, e não à obra; como escreveu Woody Allen... ah, ah, não é desta que me apanham a citar alguém a trouxe-mouxe; o que ele terá escrito foi: "para o diabo com a posteridade da obra, eu queria era viver para sempre!". O que, convenhamos, poderá ser, objectivamente, entediante.
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