Cheguei a escrever em tempos um texto no qual chamava à colação Bartleby a propósito de Cavaco Silva; fazia, continua a fazer, todo o sentido: "eu poderia fazer, mas não o fiz; prefiro não o fazer; prefiro o silêncio ao erro". Mas os últimos desenvolvimentos da farsa nacional transformaram Cavaco num triste clown de Beckett, trágico, perdido, o derradeiro romântico. Por todo o lado vê inimigos e foge, dança, faz malabarismos, não deixa descansar o país, que deve estar em pulgas (deve, deve) para saber o que verdadeiramente o apoquenta (os esclarecimentos de ontem ainda sujaram mais as águas em que este caso foi navegando).
Mas, não será doutor Cavaco tudo o que aparenta ser? A trupe socratista alegremente canta a senilidade precoce do nosso presidente, talvez para esconder o receio que deve sentir perante o menear de ancas exótico que ele executa com mestria. O que se estará a passar na cabeça do presidente? Escutas, apenas são uma boa ideia enquanto forem tema de uma vaga suspeita; fragilidade do sistema informático, um pretexto para não se falar da suspeita; finalmente, lançar as culpas dos atritos para o PS, uma cortina de fumo para cobrir as verdadeiras intenções do Bartleby de Boliqueime. O Maquiavel da Marmeleira, Pacheco Pereira, já se atreve a sussurrar o que aí pode vir, mas estamos apenas no reino do faz-de-conta, com palminhas e tudo à mistura - preparar-se-à um mini golpe de estado? Haverá reais hipóteses do presidente não pedir ao líder do partido mais votado para formar governo? Dê por onde der, o rastilho para a instabilidade permanente até à queda de um governo minoritário já foi aceso. Será que ainda nos podemos dar ao luxo de pensar que o clown não sabe muito bem o que está a fazer?
(Ah, o texto que publiquei em 2006 é tão premonitório que tenho de o republicar aqui:
Talvez seja um equívoco, mas a meu favor joga o facto de qualquer opinião sofrer do defeito a que se pode chamar de sub-evidência: o que o futuro esconde nem sempre compensa a clarividência em relação ao passado. Mas a julgar pelo que temos visto nestes primeiros dois meses de presidência - Cavaco presidente, Cavaco presidente, habitua-te! - há uma coisa que não vai mudar na figura: o estilo Bartleby. O de Melville, o escrivão que, a certa altura, decide enveredar pelo estranho caminho do desvanecimento. A resposta de Bartleby, plena de um desarmante non-sense, não exige uma réplica ou uma arguência. É assim, subsiste por ela própria. "Preferia não o fazer." Em vão o chefe se esforça para convencer Bartleby da bondade dos seus pedidos, da justeza da sua autoridade, da imoralidade do procedimento do escrivão. A tudo, Bartleby prefere não fazer. Esconde-se a um canto do escritório, alimenta o rancor dos colegas e a ira do patrão, acaba por desaparecer, literalmente, vive no escritório e ninguém - a não ser o advogado que o contratou - dá pela sua presença. Cavaco, desde o "Tabu", cultiva o estilo Bartleby. "Vai recandidatar-se?" "Preferia não responder." "Candidata-se a presidente?" "Preferia não responder." "O aborto, que tal?" "Preferia não falar disso agora." "Poderes do presidente?" "Preferia não emitir uma opinião neste momento." "Lei da nacionalidade?" "Preferia não levantar ondas." "Aprova a política do governo para a saúde?" "Preferia abster-me de emitir uma opinião sobre o assunto." E assim estamos. Mutismo e respostas evasivas. Quem temia - ou desejava - uma vigência de Cavaco agressiva e conflituosa pode ir tirando o cavalinho da chuva. Esta vai ser a presidência Bartleby. Foi assim que ele conseguiu ganhar - à segunda, não esquecer - o voto dos portugueses, será assim que ele irá conquistar o coração de um povo. Combate de uma vida. Como em Melville, as respostas de Cavaco nada dizem porque nada pretendem dizer. Não ouvimos da sua boca a negativa peremptória ou a retumbante positiva, tudo é sim, mas se, talvez. "Preferia não o fazer, que maçada. Pensar, preocupar-me, levantar ondas, que sentido há nisto tudo?" Bartleby, o escrivão, acaba como uma personagem de Beckett - ah, bendito diacronismo! - prostrado contra o solo sob o peso da existência. Não se recusa a ser. Apenas preferia não o ser. Diferença fundamental, também em questões de retórica. Passando despercebido por entre as gotas de chuva.)
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