O que me levou a comprar o livro de John Fante foi um engano. Claro que a capa e o elogio de Bukowski ajudaram, mas a primeira frase, genial, foi o gancho que me prendeu: "Eu era novo, passava fome, bebia e tentava ser escritor". Ah, se todos os livros que me passam pelas mãos começassem assim, de modo tão exacto e alusivo. O nome da editora, Ahab, é outra pista: algo que se reclama da sombra protectora de Melville merece mais do que respeito; reverência. Não tinha lido Bukowski com atenção até há uns meses, mas depois de duas soberbas narrativas (Mulheres e Correios, este publicado pela extinta - e saudosa - Canguru) e de quase toda a poesia - viva, apaixonada, tão longe da esterilidade de muito lirismo moderno - posso afirmar que já consigo detectar-lhe o estilo à primeira frase. E foi isso que apanhei ao ler aquele começo, as primeiras palavras de Fante. Deste eu apenas sabia que vivera em Los Angeles e que certamente se cruzara com Faulkner, e que fora leitura da geração beat, Kerouac, e principalmente Bukowski. Diabo, Bukowski teve de ir beber a alguma fonte, e este livro, agora quase terminado, prova-o. Li um pouco mais do primeiro capítulo, desfiz as dúvidas - referências a livros de escritores mortos em Bibliotecas Públicas, boémia e derivação, infortúnio, o que mais se pede a um escritor? Antes de sair, comprei o livro - fiz questão disso, não esperei que mo oferecessem - e comecei a lê-lo enquanto esperava pelo autocarro. Aquelas primeiras páginas contêm uma energia semelhante à que anima os livros de Bukowski, o mesmo desespero inábil e uma simplicidade técnica desarmante. Ao fim de cinco páginas, aquilo de que eu devia ter desconfiado: assinado, "Charles Bukowski, 5 de Junho de 1979". Sacana, as palavras eram mesmo dele. Distraído como sou, começara a ler o prefácio ao romance julgando ler já as palavras de Fante. Se parece ser Bukowski, é porque é; por vezes, é fácil diagnosticar a má literatura: quase sempre são maus copistas, plagiadores a soldo do esquecimento; o estilo de um bom escritor é inconfundível. Bom, sorri com o erro - e julgo que a senhora ao lado desconfiou daquele esgar meio louco. De seguida, primeiro capítulo. Mas o espanto não se esgota no prefácio, continua no (verdadeiro) primeiro parágrafo: "Uma noite estava sentado na cama do meu quarto de hotel em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, pois tinha de tomar uma decisão sobre o hotel. Ou pagava, ou saía: era o que dizia o bilhete que a proprietária tinha metido debaixo da minha porta. Um problema bicudo, a exigir toda a minha atenção. Resolvi-o desligando a luz e metendo-me na cama." Não precisava de dizer mais nada para me convencer. John Fante tem tudo o que Bukowski tem, e um pouco mais: Arturo Bandini, alter-ego do escritor, é um Holden Caulfield real, a braços com um hesitante início de carreira e às voltas com uma mexicana, empregada numa tasca, que lhe dá água pela barba. É ingénuo, impulsivo, lírico, deprimido, desabrido, terno e violento, imprevisível. Passeia-se pela Los Angeles dos anos trinta cismando na futura glória literária, carregando o peso de uma educação católica, rogando a absolvição do pecado da luxúria em que incorre quando pensa na bela latina de cabelos pretos. E vou apenas a pouco mais de meio do livro.
Ainda bem que Bukowski me levou ao engano. O acaso é o alicerce que sustenta a vida.