Cada um o seu cinema, mais do que uma homenagem ao cinema, é uma dedicatória a Cannes e um elogio da política de autores. A quantidade de filmes de produção europeia que são citados nas curtas é esclarecedora: contam-se 6 ou 7 de Godard, alguns de Truffaut, Dreyer, Fellini, Mastroianni (na belíssima evocação de Theo Angelopoulos) e Lars von Trier (numa narcisística e irónica citação do próprio); sucedem-se frases famosas da história do cinema, e na curta de Angelopoulos Jeanne Moreau limita-se (mais do que isso, eu sei, muito mais do que isso) a repetir (a repetição é sempre diferente) as suas linhas em A Noite, de Antonioni. As sombras projectam-se no rosto dos espectadores e constroem uma breve história do cinema europeu dos últimos quarenta anos - pelo menos aquele que Cannes acarinhou e tornou dogma da cinefilia. Agora que saiu um livro sobre os novos snobs cinéfilos, os novos que preferem Tarantino a Truffaut, Argento a Antonioni, sabe bem ir ver este poema de amor ao acto de ver um filme, ficar maravilhado. Até que o último cinema do mundo seja encerrado e as ruínas conquistem o seu domínio - como se vê na comovente curta de Hou Hsiao-hsien, a indesejada premonição de todos os cineastas e cinéfilos, o seu pior pesadelo.
29/05/09
21/05/09
João Bénard da Costa (1935-2009)
Quem ama o seu trabalho arrisca-se a ser o melhor no que faz; mais ainda se o que fizer for a paixão de uma vida. Para João Bénard da Costa, passar os dias na Cinemateca era viver - dizia-o em entrevistas - ver filmes era viver, falar sobre cinema era viver. Ter tido um homem como ele a dirigir uma instituição como a Cinemateca foi um golpe de sorte, um acto divino, uma excepção à mediocridade reinante. Gerações de cinéfilos devem-lhe muito, quase tudo; realizadores, críticos, nós que o lemos e que, em maior ou menor grau, adoramos os filmes que ele adorava. A superlatividade não era apenas um pormenor, uma boutade, era um método, uma forma de encarar o cinema: cada filme era o melhor, o grande filme, a obra perfeita, o mais belo. Não havia exclusividade na paixão de Bénard da Costa; ele amava os filmes como um mulherengo ama as mulheres: cada um era uma revelação, uma epifania. E como sabemos disto: através do que ele escrevia. É que, para além do trabalho de programador, inatacável, conseguia escrever sobre cinema como ninguém, em estilo e em conteúdo.
A dúvida que há uns anos correu por aí, sobre cargos públicos e outras inutilidades do género, mostrou a ingratidão de um país. Já sabemos que a unanimidade é uma utopia, mas a injustiça em relação a alguém como ele é sempre incompreensível. A única sombra que resta é aquela que é projectada na sala de cinema; arte de fantasmas, o cinema resistirá ao seu desaparecimento. Talvez isso suceda em consequência do esforço de uma vida; devemos a Bénard da Costa parte do que é o cinema em Portugal.
Quando estivermos sentados na penumbra, pensemos na sua sombra. E no amor que ele tinha aos filmes; talvez assim nos aproximemos um pouco mais da outra sombra, a que se projecta na tela. Talvez.
17/05/09
14/05/09
Qualidades (1)
O tema preferido do poeta é quase sempre ele próprio. Ou, se quisermos, o tema que mais se repete em toda a poesia é o poema em si, a razão de sua existência, o lugar no mundo, sobretudo o esplendor da sua importância. Em todo o livro de poesia publicado existe uma "arte poética"; o que isto quer dizer? Poderíamos pensar que este questionamento é compreensível, salutar; mas no fundo o que leva o poeta a reflectir sobre o que está a escrever - o acto da escrita, no presente, é um permanente ziguezague, e não consigo pensar em caminho mais ínvio do que o da auto-reflexividade - é a dúvida. A dúvida, mortal, sobre a validade do texto, sobre o domínio da técnica, sobre a coerência dos temas, sobre a qualidade, a "qualidade" que o poeta deve ter. O problema é que esta dúvida, intrinsecamente litarária, soma-se à maldita dúvida existencial. Já não bastava ao poema sofrer com o mundo, como ainda tem de sofrer com as inseguranças do poeta. É portanto avisado esquecermos aquela coisa romântica do carácter sublime da poesia, a forma literária mais perfeita; a poesia vive da fragilidade, da fraqueza; a pós-modernidade provou como ela é obsoleta. E o poeta, esse ser que recebe o sopro directamente de Deus, é uma espécie em vias de extinção. Por isso, pergunta, o que é isto que eu faço? Poesia é a anti-matéria por excelência, uma inutilidade num mundo marcado pela supremacia do utilitarismo e da técnica. O poeta pode sempre escolher a via new-age: não podendo provar como é necessário ao mundo, mantém-se à margem dele, cultivando a distância e curtindo o ressentimento dos abnegados. Mas até esta margem é ilusória; o presente integrou as franjas da sociedade no seu corpo, não há lugar para poetas malditos. E os poetas que se dizem malditos podem dar-se ao luxo de fingir: os prazeres da burguesia são sempre uma boa desculpa para escrever poesia.
Mas alegremo-nos: as discussões sobre o vazio são sempre as que melhor nos conseguem esclarecer sobre a natureza humana. A "arte poética", brilhante e solipsista, é a prova da inutilidade da poesia. Mas como poderemos nós destruir o que é simplesmente belo?
12/05/09
Comboios
O tempo que demora uma viagem de comboio tem de servir exactamente para terminar o livro que andamos a ler; nem mais, nem menos. Deve-se por isso controlar o número de páginas antes, ler até ao ponto em que sabemos restar apenas o fim de história que irá preencher o tempo de duração da viagem - sesta incluida, cabeça encostada à janela luzindo de gordura, saliva ameaçando cair a qualquer momento.
Um cálculo errado pode arruinar o prazer; se lemos demasiado rápido, corremos o risco de o livro chegar ao fim duas estações antes. O horror! O que fazer até sairmos? Olhar pela janela, quando a noite acabou de cair? Espreitar os olhos da passageira fugidia que se sentou dois lugares à frente, só para poder observar de longe o observador? Nada parece certo; acabámos de sair de um território desconhecido, o aborrecimento do dia-a-dia não pode ser uma hipótese.
Mas pior é se, ao ser anunciada a estação em que devemos sair, ainda faltarem umas quantas páginas (demais) para acabar; a pressa, o pânico, a tentação de saltar linhas, parágrafos inteiros. Não vamos lá, e depois? Em casa? Teremos de esperar até que a calma doméstica permita algum tempo para retomar o que deixámos a meio, perto, muito perto da meta? Mas não será a mesma coisa. O intervalo é fatal; enquanto percorremos o caminho de casa, as personagens esvaem-se, em sangue, literal e figurativamente, desaparecem do nosso horizonte. E quando voltamos a pegar no livro, nem elas nem nós somos os mesmos. Imperdoável.
A duração, a flexibilidade da leitura, o movimento acampanhando o ritmo das palavras. Tudo se compõe no fim, no momento imediatamente anterior a uma voz soar: próxima estação...
06/05/09
05/05/09
Vasco Granja (1925-2009)
Cresci a ver os programas de animação apresentados por Vasco Granja; os Looney Tunes, os desenhos de leste (onde é que era a Checoslováquia? como poderia conhecer esse país que apenas existia porque um apresentador de um programa de televisão me falava dele?), o Bugs Bunny, claro, e o Beep-Beep e o Coiote, provavelmente o meu preferido; marcou-me tanto que, há uns anos, encontrei Vasco Granja por acaso no King e quase o abracei, em emocionado agradecimento (acabei por não o fazer).
Havia um desenho animado canadiano - ganhara um prémio qualquer que me é impossível de precisar - que me marcou bastante, ao ponto de 25 anos depois ainda me lembrar dele: uma fileira interminável de homens numa planície; todos iguais, andando um passo em frente de tanto em tanto tempo; todos iguais, excepto um, que tudo fazia para evitar dar esse passo em frente quando chegava a sua vez. Avanço até ao fim: à beira de um precipício, percebe-se que o passo em frente desemboca no vazio de uma queda. Quando chega a vez do homem, ele tudo faz para evitar cair. Mas cai.
Para sempre, Vasco Granja.
04/05/09
Distant Voices, Still Lives
Distant Voices, Still Lives é um daqueles filmes (um díptico, para sermos exactos) que parecem esperar pelo momento em que os descobrimos; uma surpresa, um deslumbramento imediato, levando-nos a pensar por que razão ainda não tinha chegado a nós. Ou então a série de acasos é ilusória - todo o bem que dizem desta obra simplesmente passara até agora despercebido.
Um filme sobre a memória - e não são todos? A imagem cinematográfica captura o presente, mas como recuperar um passado que nenhuma imagem guardou? A reinvenção é a única possibilidade. O filme é um longo sonho sobre uma vida que o realizador, Terence Davies, imagina ter vivido. Liverpoool nos anos 60, os lampejos de realismo britânico, a biografia que tece o fio narrativo - pretextos para uma tentativa de reconstrução de um mundo em perda; recuperar as ruínas. Um sonho, insisto, e quando a câmara, em lento travelling da direita para a esquerda, abandona o presente, não é apenas o espaço que fica vazio, também o tempo; o olhar de Davies foca-se numa ausência, num vazio, e no seu lugar apenas sombras restam.
O cinema permite que o tempo se detenha na sua voracidade; a fragmentação da memória é como um conjunto de estilhaços disparado em várias direcções (a fabulosa cena do vidro a partir-se é essencial) e no final apenas podemos esperar que o tempo se reorganize respeitando uma ordem afectiva - a casa, a luz, as canções, as histórias, território repovoado, intervalos desordenadamente preenchidos.
Deve ser esta a imobilidade fulminante de que falava António Ramos Rosa.
Subscrever:
Mensagens (Atom)