27/02/09

A dúvida

Quentin Tarantino, em Death Proof, compõe um requiem aos duplos, heróis em vias de extinção num tempo de efeitos especiais digitais, sem sangue nem graça. Há-de chegar o dia em que até as pernas e outras partes de belo efeito das actrizes que se expõem como vieram ao mundo serão pixels projectados na tela, e nessa altura haveremos de suspirar pelo corpo de Shelley Michelle em Pretty Woman, o resto acrescentado à cabeça de Julia Roberts no poster do filme (pelo menos, a carne era original). E este parece ser um hábito que regressou, a julgar pela número de circo prosseguido em The Curious Case of Benjamin Button, recorrendo apenas a um computador e ao rosto da metade mais inteligente do casal Brangelina. 

Esse tempo chegará, e por enquanto ficamos na dúvida em relação àquilo que nos é oferecido; terá sido Kate Winslet dobrada na cena de onde foi retirado o frame que postei mais abaixo? Aquele magnífico fio escuro, desfocado e visto apenas durante alguns brevíssimos segundos, por entre a rapidez elegante de uma meia sendo puxada coxa acima, é um fantasma real, de alguém cujo rosto julgamos conhecer, ou uma sombra de uma sombra, duplo em que acreditamos porque o cinema a isso nos obriga? O cruzar de pernas de Sharon Stone terá feito sonhar alguns, mas a dúvida, essencial nestes processos, estava ausente da fantasia: era mesmo ela que ali estava, nenhum truque de câmara ou de montagem tenta sequer esconder o facto. Mas Winslet, seria ela, alguém por ela? Qual é a resposta que queremos? Qual a pergunta?

[Sérgio Lavos]

26/02/09

Winslet

Agradeçamos ao Senhor ter concedido a Nicole Kidman o dom da maternidade na altura em que O Leitor deveria começar a ser filmado. Sem ela não teríamos Kate Winslet. E o mundo seria um pior lugar para se viver.

[Sérgio Lavos]

Vento (2)

[Sérgio Lavos]

21/02/09

Musicofilia/Oliver Sacks



Poderá a neurologia, uma ciência exacta, explicar, definir, entender a música? Uma simples questão que Oliver Sacks, em Musicofilia (ed. Relógio d'Água) tenta elucidar.

O método é o de sempre, no autor norte-americano: através da exposição de uma sucessão de casos clínicos, de anomalias, elaborar uma teoria da normalidade. Estes casos extremos, que vão de uma simples sensibilidade musical apuradíssima a diversas incapacidades, sejam de tom, de ritmo ou de melodia, são citados por Sacks num contexto de laboratório; os modernos exames que permitem "ler" a actividade cerebral corroboram teorias que, em alguns casos, já têm quase um século. 

Poder-se-ia pensar que a alma estaria ausente de um livro tão determinantemente empirista como este; porém, não é esse o caso. Sacks parte de um questionamento metafísico - o que é sentir a música, de que modo ela actua sobre nós -  para chegar a teoria, nunca verbalizada, do sentimento musical. 

O progresso da ciência tornou obsoletas as categorias estéticas tradicionais; o livro de Sacks prova este facto, ao reduzir a impulsos eléctricos e zonas activas e inactivas do cérebro o gosto musical, desde sempre o mais indefinível pela filosofia. Não existe o que se chama a música das esferas, ou uma qualquer emanação divina que explique o maravilhamento perante uma cantata de Bach ou a 5ª sinfonia de Mahler. O deleite que a música nos provoca, o extâse espiritual, é a soma de uma sequência de acontecimentos físicos: a cadência certa de notas na pauta, tocadas da forma mais perfeita possível, escutadas pelo ouvido correcto, estimulando de forma intermitente áreas diferentes do cérebro. É esta a descrição possível do acto de "ouvir música". Ou haverá algo mais? Sabemos o "como", mas ficaremos a saber o "porquê"? Será necessária, a pergunta? Oliver Sacks não se atreve a ir tão longe, apesar de toda a paixão que revela perante a música. Para ele é suficiente saber como funciona o nosso cérebro quando a escutamos; a beleza do mistério resolvido.

(O vídeo mostra a peça musical mencionada no capítulo mais pessoal (e mais estimulante) do livro, "Lamentações: Música, Loucura e Melancolia": Winterreise, de Schubert, interpretado por Dietrich Fischer-Dieskau)

[Sérgio Lavos]

18/02/09

Believe/Chemichal Brothers



Realizado por Dom and Nic, dupla responsável por outros videos dos Chemical Brothers, Believe é um breve apontamento sobre a paranóia moderna. Do homem-funcionário ao homem-máquina, um passo apenas; do homem-máquina à loucura, ainda mais curto o caminho.  
A melhor música do último álbum da banda, Push the Button, enriquecida pela voz de Kele Okereke, vocalista dos Bloc Party, já tem, à partida, na sua repetição obsessiva do refrão e no recurso a batidas industriais, de linha de montagem, demarcado o território temático que o video acaba por explorar. Mas o modo como imagens, música e conceitos se complementam é quase perfeito, ao longo de pouco mais de 4 minutos. E o tempo que dura obriga a que se esqueça rapidamente o que se viu, e rapidamente se aceite a sociedade que o video mimetiza. A profundidade da pele, em forma de música pop.

[Sérgio Lavos]

07/02/09

Tarnation


Partir do impossível para chegar ao provável (fazer uma aproximação à vida): o objectivo de Jonathan Caouette em Tarnation.
 
O trabalho de organização das imagens captadas desde a infância funciona como uma memória imutável, permitindo fixar em película aquilo que, por natureza, é fugaz. A montagem, os ritmos, o texto que legenda o filme, constroem uma obra que, na sua concretização, já não se pode chamar de documental. A ficção (tempo de criação) não existe enquanto texto (a escrita do guião) mas sim enquanto organização de uma narrativa pré-existente - a vida de Caouette. Para além de esta técnica, temos a outra ficção, mais vulgar, da reencenação de acontecimentos - a memória representada perante as câmaras. E é de exposição que a obra de Caouette trata: um reality-show emocional que na aparência é uma sessão de terapia e auto-conhecimento mas na realidade acaba por ser um despudorado momento de submissão à sociedade do espectáculo. 

O que ficou na sala de montagem? Quantos metros de filme levando a vida de Caouette noutro sentido foram preteridos em favor das imagens finais? Qualquer filme não é apenas a soma das suas partes - é também o que o realizador recusa; mas quando falamos da própria vida, o que fica de fora? O filme de Caouette anula as diferenças entre ficção e documentário, esclarecendo algumas dúvidas, tanto a nível de forma como de conteúdo. A objectividade é uma impossibilidade, e qualquer documentário será sempre uma obra de ficção: e os melhores são ficção pura - veja-se, por exemplo, I'm Not There ou Last Days e esqueça-se Milk.

[Sérgio Lavos]

06/02/09

Maridos e mulheres



O que se perdeu nos últimos filmes de Woody Allen foi, essencialmente, o confessionalismo neurótico e pretensioso que marcou a sua obra até à ruptura com Mia Farrow. O último filme em que ela participou, Maridos e Mulheres, é um tratado dos males da conjugalidade, partindo de um princípio que, para Allen como para o seu herói Groucho Marx, sempre foi soberano: qualquer relação entre homem e mulher está condenada à partida, e o fim será sempre uma tragicomédia.

Os dois casais, representados por Allen e Farrow e Sidney Pollack e Judy Davis (a quintessência da mulher em queda, necessariamente distinta da mulher em estado de graça que Diane Keaton personificou no cinema de Allen), caminham alegremente em direcção ao descalabro ou à resignação; a ruptura de Allen e Farrow é uma tragédia, mas não é menos que o tédio disfuncional de Pollack e Davis, casal condenado à eterna provação da incompatibilidade sexual, a um convívio frio e cínico, "porque não são do tipo de ficarem sozinhos". 

Woody Allen conseguiu ser mais cruel noutros momentos da sua filmografia (Celebridades, Crimes e Escapadelas), mas Maridos e Mulheres torna-se excepcional pelas circunstâncias em que foi realizado: a separação de Allen e Farrow é minuciosamente dissecada pela câmara em modo de falso documentário, e o regozijo voyeurista acaba por ser inevitável. Os faux-raccords, as entrevistas encenadas, a vida exposta sem nunca ser dado o passo que certifique a passagem definitiva à realidade. No rio que une vida e arte, o guião assume papel de barqueiro: o humor clássico de Allen conduz o filme a bom porto; conseguimos não entrar de rompante na intimidade do casal que se separa.

[Sérgio Lavos