Há razões para ter voltado a ler Cães Pretos, de McEwan, mas talvez elas agora não interessem. Certo é que a releitura foi rápida e, como sempre com McEwan, um prazer. Há nele aquele domínio dos mecanismos da ficção que leva-nos a percorrer as vidas das personagens sentindo-as tão próximas como o familiar que gostaríamos de conhecer intimamente. Não é que não se evidenciem as técnicas e os truques, as marcas de estilo - o tema da confiança no narrador, quando a narrativa é feita na primeira pessoa, recorrente em McEwan, é também aflorado numa das passagens mais brilhantes do romance (quando o narrador conta as duas versões da história do enamoramento de June e Bernard, pelos olhos de um e de outro) - mas os experimentalismos nunca se afastam dos caminhos do romance clássico; estamos longe, muito longe, das derivas pós-modernistas.
James Wood escreveu sobre o trauma e o acaso nos romances de McEwan, e Cães Pretos será um dos melhores exemplos desse interesse. A epifania que roubou June ao comunismo e a Bernard surge de um magnífico acaso: um passeio pelo Languedoc, Bernard fica para trás e June depara-se com dois mastins negros dos quais escapa num movimento a que só poderá ser atribuído o qualificativo de milagroso. Entre o furioso mundo materialista do comunista Bernard e uma vida de busca espiritual, a distância curta de uma ameaça surgida do nada. O que será mais forte, mais digno de salvação? O amor certo e definitivo, ou a própria alma? Ninguém poderá amar sem se negar a si próprio. June e Bernard são fieis a identidades e construções do eu que se opõem, e essa diferença nunca será ultrapassada. Um amor a que não se submetam o espírito e a alma nunca poderá verdadeiramente florescer.
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