Um ano depois de ter recebido o prémio de melhor longa-metragem no Indie Lisboa, Ruínas, de Manuel Mozos, estreou nas salas portuguesas, duas semanas antes de o mesmo acontecer com o novo de João Canijo, Fantasia Lusitana. Não será uma coincidência que os dois filmes estreiem tão próximos no tempo; os dois objectos aproximam-se, tanto a nível formal – são ambos documentários – como temático – reflexões sobre um Portugal passado, preferem à nostalgia bacoca a frieza do registo de um tempo, o primeiro, e o reconhecimento de uma portugalidade enraizada que não permite a mudança de mentalidades, no caso do segundo. Estas duas obras, em conjunto com Pare, escute e olhe, mostram a vitalidade do cinema português documental, ou melhor, do cinema português, ponto; os cães ladram e a caravana passe, e contra todas as vozes que questionam o financiamento estatal ou a qualidade do que se produz, a verdade é que o cinema se tornou, nos últimos quinze anos, um dos principais embaixadores do país. Os prémios em festivais, as presenças em listas dos melhores da década que passou, as regulares recensões nas melhores publicações da especialidade – Cahiers du Cinéma, Sight and Sound, New Yorker – transformam as vozes de burro em ruído de fundo, estéril e, sobretudo, ignorante.
O filme de Mozos é uma obra superlativa do actual estado de coisas. Documentário que conta uma história – ou várias – Ruínas parte do que se propõe – filmar edifícios em decadência enquadrados na paisagem actual – para reflectir sobre um século XX que chega a nós marcado pela destruição e a violência. O início é significativo para o que virá depois: um plano fixo da implosão das torres de Tróia, esse exemplo maior de todos os crimes urbanísticos cometidos em nome do “desenvolvimento nacional”. Mas este arranque acaba por inverter o rumo logo de seguida: passamos ao restaurante panorâmico de Monsanto, exemplo da arquitectura do Estado Novo que os lisboetas esqueceram. Os murais de Almada Negreiros são o testemunho de uma época perdida, os corredores cheios de entulho o que restou, a vista sobre o Tejo o sinal do que ainda poderia ser. O olhar de Mozos é mais melancólico que crítico: na maior parte dos casos, foi o chamado progresso que tornou os edifícios obsoletos. É esse o caso do sanatório das Penhas da Saúde, usado para curar os doentes tuberculosos, ou as minas de Aljustrel, abandonadas, como quase toda a exploração mineira em Portugal. Antes da sequência do restaurante em Monsanto, a câmara capta as únicas pessoas em todo o filme, numa cena filmada no cemitério do Prado do Repouso, no Porto; os espaços vazios, povoados de fantasmas – a voz-off a ler textos da época, os apontamentos sonoros espectrais, o pontual som ambiente que irrompe do nada – são precedidos pelo lugar onde a morte tem o seu reino, onde os vivos visitam os mortos. A pedra dos túmulos é igual à pedra das ruínas, nela estão gravados os murmúrios dos antigos vivos.
O filme é Portugal, aqui e agora, e os destroços que foi deixando para trás. Como os narradores de W. G. Sebald, mudas testemunhas da passagem do tempo, a câmara de Mozos fixa para memória futura o século XX. Século de avanço, oportunidade, optimista como a pessoa que se lembrou de construir instalações bem apetrechadas para os funcionários da Hidro-Eléctrica do Douro, uma promessa de modernidade que o Estado Novo nunca chegou a cumprir; mas século também de desilusão, que as últimas décadas firmaram de modo decisivo, as décadas que viram crescer Manuel Mozos e a nova geração de realizadores portugueses. Se há um tema que os una, é a vontade de filmar os espaços como prolongamento da vida das pessoas. O filme que antecede Ruínas, em complemento, Canção de Amor e Saúde, de João Nicolau, é outro exemplo disto. Ingénuo quanto baste, resgata a Nouvelle Vague e afirma-se devedor do cinema de João César Monteiro (Nicolau foi assistente do realizador em Vai-vem, a derradeira obra), ensaiando um upgrade geracional significativo. Enquanto Monteiro filmou os espaços de um certo Portugal pitoresco, Nicolau, nesta curta-metragem, interessou-se por mais um não-lugar do Portugal contemporâneo: o centro comercial. Centro comercial e juventude, se os juntarmos iremos falar de todas as expectativas defraudadas da minha geração. Nicolau, mesmo não tendo a intenção reflexiva que o tema merece (uma curta-metragem não chega), consegue realizar um charmoso exercício cinéfilo que tem o apelo do video-clip da geração Michel Gondry e alguns planos perfeitos e elegantes.
Resumindo, sessão dupla que vale por muitas. Bom cinema português? Grande cinema, ponto final, parágrafo.
Sem comentários:
Enviar um comentário