Lisbon Story, de WimWenders, é uma carta de amor à cidade.
Apenas o tinha visto uma vez, em 1994, quando estreou incluído na programação do evento "Lisboa - Capital da Cultura". Alguém se lembra? Alguém se lembra da polémica que foi ter sido entregue a um estrangeiro, Wenders, a encomenda de um filme sobre a cidade? A fatuidade de certas indignações é um dos mais arreigados portuguesismos. Também houve o CCB, a Expo, e passado todo este tempo, são mais os benefícios do que as desvantagens que estas obras trouxeram ao país. E com certeza não foi o dinheiro gasto - derrapagens incluídas - nestes marcos culturais que agora falta nos nossos bolsos; o que falta é eficiência na aplicação do dinheiro público, todos os fundos perdidos que foram produzindo um gigantesco nada para onde lentamente vamos escorregando.
Do filme de Wenders, ficam as imagens; o que pode ficar, o que se bate pela continuidade, pela memória das coisas. Manoel de Oliveira, no pequeno apontamento em tom de comédia, diz tudo: um manifesto a favor do cinema enquanto máquina que resgata o tempo que passou. Não é uma coincidência que Wenders tenha escolhido Lisboa como lugar da sua mais premente reflexão sobre o cinema, o seu filme mais teórico; a cidade velha de séculos deixava-se lentamente decair, e o rio era o espelho dessa decadência. O cinema prospera no caos, e entre os bulldozers que começavam a apagar um bairro inteiro (o da Liberdade, irónica liberdade) do mapa, em nome de um progresso de betão e novas auto-estradas, e a permanência dos sons de costumes antigos (o amolador, o mercado da Ribeira, os pregões, os Santos), captados pelo microfone do sonoplasta (Rüdiger Vogler), havia matéria de sobra para produzir mais do que um bilhete-postal bem composto; Wenders conseguiu, ao desenhar um paralelismo entre a volubilidade das cidades e das construções em pedra e a eternidade imaterial de uma imagem. A câmara que Friedrich (o realizador em deriva existencial, Patrich Bauchau) transporta às costas, tentando captar a paisagem intocada pelo olhar humano, nunca conseguirá descrever o que era a cidade naquele tempo. Apenas a subjectividade do olhar humano poderá reconstituir a objectividade de uma vivência inserida num tempo. A câmara sem mão humana que a controle cria uma imagem plana, sem um devir temporal que atribua uma qualidade material à paisagem, uma possibilidade de ser tangível. O espectador será sempre também o autor que filma; a questão não é a preservação da memória - um acto que se ancora no passado - a questão é a criação de um tempo - um presente que a cada momento se actualiza, se torna futuro.
[Sérgio Lavos]
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