13/12/13

Diário de Dezembro (3)


Uma das notícias do dia vem de África, mas não fala de calor nem de deserto, nem de violência. No Cairo, cento e doze anos depois, nevou. Fotografias circulam pela net, aparecem nos jornais on-line. Uma cidade de sol coberta de um branco sujo, retalhada em imagens naturais ou manipuladas por filtros digitais, uma cidade que por momentos parece ter sido deslocada do seu paralelo para outro muito mais a norte. Há alguns dias, outra notícia dava conta de que tempestades de neve tinham atingido o sul dos EUA, e uma vez mais fotografias tiradas na "sunny California", onde a primavera parece ser eterna, mostravam cidades desabituadas do frio tomadas pelo manto silencioso da neve. 
A natureza excepcional deste acontecimento atmosférico parece contradizer o que fomos ouvindo nas últimas décadas. Caminhamos ao contrário do aquecimento global previsto por milhares de cientistas em todo o mundo, e isso apenas pode ser uma coisa boa. Parece que a Natureza dispensa as previsões e os estudos que as suportam, e toma o seu curso habitual lutando contra a mão humana que vem alterando de forma esmagadora o meio ambiente onde calhou vivermos. 
Mas pode ser tudo, claro, um fenómeno transitório, irrepetível. Talvez os modelos de comportamento do planeta estejam mesmo correctos e naveguemos em direcção a um futuro em que a Natureza rejeitará a conquista agressiva que caracteriza a passagem do ser humano pelo mundo. Se assim for, celebremos estes momentos de absoluto milagre, ainda por cima o mais provável dos milagres, o que nasce da possibilidade de uma combinação de elementos que, a determinada altura, resultou.

12/12/13

Diário de Dezembro (2)

O ritmo estabelecido pelo correr dos dias, o ritmo circadiano – a manhã, a tarde, a noite e o adormecer – tem tanto de biológico como de cultural.
Li recentemente uma notícia sobre uma descoberta científica (histórica?), revelando que o horário habitual para o período do sono – as sagradas oito horas diárias que os médicos aconselham e a que os poetas e os loucos procuram escapar – era consequência de uma invenção humana. A progressiva introdução da luz artificial nos hábitos humanos, ocorrida sobretudo a partir do século XVI, permitiu que a vigília se prolongasse muito para além do pôr-do-sol. Esta mudança – como quase todas as que o progresso tecnológico traz – ocorreu primeiro nas camadas mais ricas da população. A nobreza e a burguesia podiam dar-se ao luxo do convívio social noite fora. Os mais pobres, nem por isso: mesmo com luz artificial, a obrigação do trabalho cedo, raiando o sol, continuaria a não permitir o usufruto dos avanços científicos.
E como se regulava o ciclo dos dias, até essa época? As pessoas deitavam-se assim que a noite caía, após a última refeição do dia, e espantosamente (aos nossos olhos) acordavam a meio da noite e conversavam durante uma ou duas horas, comiam, e voltavam a adormecer até ao amanhecer. Estaria assim o ciclo circadiano humano mais próximo do de outros animais; repartíamos o sono (e os sonhos) ao longo das vinte e quatro horas estipuladas. Segundo a pesquisa feita, ainda agora conservamos resquícios dessa prática natural. Quem nunca acordou a meio da noite e sentiu vontade de assaltar o frigorífico?
Vivemos portanto os nossos dias lutando contra a natureza, contra aquilo que nos fez humanos. Mas o que nos fez humanos foi tudo o que conquistámos ao que a Natureza nos impôs. Não precisamos de viver de acordo com os ritmos naturais, inventámos os instrumentos necessários a contorná-los, sobrepô-los, esquecê-los. Precisamos da noite e da luz artificial para prolongar o nosso tempo de lazer. O dia para o trabalho, para a ocupação monótona do corpo; a noite para a leitura, para a conversa, para estarmos uns com os outros – a noite para a libertação completa do espírito.
Distanciarmo-nos tanto do que em nós é animal, instintivo, poderá ter um preço. É à noite que o medo espreita. Se quando vivíamos nas cavernas esse medo era palpável e usava o rosto dos animais que nos caçavam, agora tornou-se difuso, e em vez de ser uma presença, é esquivo, misterioso: uma ausência. Na noite, entregamos o espírito ao que não pode ser descoberto. Não temos feras que nos matam, ameaças claras, e no seu lugar há como que um círculo invisível ao redor do qual traçamos infinitas investidas, voos de reconhecimento, que nunca chegam a determinar de forma exacta as coordenadas espaciais que procuramos. Rondar a verdade antes de adormecermos é um inútil exercício, votado à derrota. E contudo a ele voltamos diariamente, ou então esforçamo-nos por não voltar, tentando enganar o que não poderá ser enganado. Quando vivíamos no meio de feras, o mundo era mais certo.

03/12/13

Diário de Dezembro (1)

O frio não é tanto que não se consiga suportar. Queixar-me dele e pensar no Norte, nos países dos prolongados invernos e das noites que não chegam a ceder ao dia, é um sintoma de fraqueza. Viver acima dos trópicos – os de Michaux e os de Claude Lévi-Strauss, onde a doença acampa à porta de cada coisa e vive na vizinhança de uma beleza transcendente – e abaixo do círculo imaginário da neve – tem tanto de conforto como de delicada monotonia. Até que ponto a ausência de filósofos e o excesso de poetas não será consequência de um incidente geográfico? Vivemos a sul, mas não o suficiente para que tivéssemos inventado o samba – simplesmente fomos tão longe levar a melancolia que criou a bossanova e a morna. Não somos capazes da alegria, mas não somos tristes a ponto dos nossos criadores, ao longo dos séculos, se terem fechado dentro de casa a estabelecer modelos filosóficos. Fernando Pessoa, encerrado no seu quarto de funcionário, abria uma janela e deixava a luz entrar, apagando os vestígios de angústia e eliminado qualquer possibilidade de impor uma ordem aos seus infinitos papéis, às suas múltiplas identidades. O estilo fragmentado do “Livro do Desassossego” é a prova de que a filosofia falha, decompõe-se, e esboroa-se, quando manuseada pelo gesto intermitente e incerto de um qualquer pensador português. O trabalho do filósofo, rigoroso, aborrecido, dividindo cada ideia na ideia de si mesma até ao ínfimo pormenor, precisa de um tempo e de um espaço concentrados de tal modo que desapareçam, e no seu lugar apenas as palavras dando corpo às ideias e aos esquemas da mente sobrevivem. O poeta, mesmo quando metafísico, como Bernardo Soares, perde-se e afasta-se da ideia inicial, diverge, viaja dentro de si próprio sem mapa nem bússola. Escrever é sempre um acto de partida – de um lugar preso de incerteza para o outro ainda mais incerto – e tem uma potência em si que o filósofo quase sempre despreza - o seu material de trabalho são ideias, as palavras apenas um meio de as transmitir, uma ferramenta. Para o poeta as palavras são ferramenta mas são também “metal fundido”, pronto a ser moldado, transformado noutra coisa distante da sua função original – a língua na qual elas existem.