Sobre a maravilha técnica chamada Avatar muito se tem escrito, mas o que James Cameron mais queria - um blockbuster que apelasse ao coração dos membros da Academia - acabou por se concretizar na perfeição. Eu até nem posso dizer mal de Cameron, confesso; gosto do segundo Alien, o mais musculado, gosto do Exterminador Implacável e ninguém pode duvidar de que o homem sabe filmar cenas de acção como poucos. Mas quando, em meados dos anos 90, se separou de Kathryn Bigelow e teve um sonho - ganhar Óscares - o que saiu foi... Titanic, e quem não sinta suores frios só de pensar na voz de Celine Dion que atire a primeira pedra. Muitos anos depois, o regresso teria de se fazer em grande, e no mesmo comprimento de onda. Avatar é na verdade um prodígio em 3D e Cameron quase que consegue criar um Universo próprio - e, diga-se, as batalhas estão bem encenadas, de cortar o fôlego. Lamentavelmente, esse tal Universo é mais apelativo a audiências infantis ou adolescentes - o meu filho vibrou com o final, quando os Na'vi contra-atacam.
A melhor análise ao filme foi escrita por Slavoj Zizek, o que não surpreende, e foi publicada no Russian Journal - infelizmente, o site apenas está disponível em russo, e somente através de assinatura se consegue obter a versão inglesa em PDF. De Lacan a Arundathy Roy, passando pela filosofia chinesa, Zizek consegue evidenciar a plasticidade da crítica anti-capitalista ensaiada por Cameron. O grande público, na cabeça do realizador, deve ser reduzido ao mínimo denominador comum, uma criança: os militares são maus - o coronel é uma caricatura -, com a excepção do herói, humano que apenas deserta quando posto entre a espada e a parede; os Na'vi são bons, criaturas fofas que, vá-se lá saber porquê, apenas podem ser salvas por um colono - e, ainda por cima, incapacitado. Os paralelismos com a atitude beligerante americana são tão evidentes que perdem toda a força. A força rebelde ganha legitimidade apenas porque há alguns humanos que a apoiam. Zizek passa desta realidade - duplamente virtual - para os nossos dias, falando da rebelião que neste momento está a ter lugar no estado indiano de Orissa (artigo de Arundhati Roy aqui), uma reacção contra a planeada exploração dos recursos minerais (no caso, bauxite) da região por empresas de exploração mineira. O grupo rebelde é considerado uma organização terrorista (essa bela capa usada a torto e a direito nos dias de hoje) pelo Governo indiano, apesar dos seus poucos recursos e quase nenhum dano infligido no inimigo que combate.
O cinema tem o poder de manipular as emoções do espectador, e a maior parte das vezes isso pode ser libertador. Mas à emoção, imediata, instintiva, deve suceder sempre a razão; dos milhões de espectadores que viram Avatar, quantos sentiriam simpatia pela tribo dos Kondh, que neste preciso momento passa por uma situação semelhante ao povo Na'vi? Em que momento é que a ficção ganha mais peso do que a realidade?