26/02/10

O povo Kon'dh



Sobre a maravilha técnica chamada Avatar muito se tem escrito, mas o que James Cameron mais queria - um blockbuster que apelasse ao coração dos membros da Academia - acabou por se concretizar na perfeição. Eu até nem posso dizer mal de Cameron, confesso; gosto do segundo Alien, o mais musculado, gosto do Exterminador Implacável e ninguém pode duvidar de que o homem sabe filmar cenas de acção como poucos. Mas quando, em meados dos anos 90, se separou de Kathryn Bigelow e teve um sonho - ganhar Óscares - o que saiu foi... Titanic, e quem não sinta suores frios só de pensar na voz de Celine Dion que atire a primeira pedra. Muitos anos depois, o regresso teria de se fazer em grande, e no mesmo comprimento de onda. Avatar é na verdade um prodígio em 3D e Cameron quase que consegue criar um Universo próprio - e, diga-se, as batalhas estão bem encenadas, de cortar o fôlego. Lamentavelmente, esse tal Universo é mais apelativo a audiências infantis ou adolescentes - o meu filho vibrou com o final, quando os Na'vi contra-atacam.
A melhor análise ao filme foi escrita por Slavoj Zizek, o que não surpreende, e foi publicada no Russian Journal - infelizmente, o site apenas está disponível em russo, e somente através de assinatura se consegue obter a versão inglesa em PDF. De Lacan a Arundathy Roy, passando pela filosofia chinesa, Zizek consegue evidenciar a plasticidade da crítica anti-capitalista ensaiada por Cameron. O grande público, na cabeça do realizador, deve ser reduzido ao mínimo denominador comum, uma criança: os militares são maus - o coronel é uma caricatura -, com a excepção do herói, humano que apenas deserta quando posto entre a espada e a parede; os Na'vi são bons, criaturas fofas que, vá-se lá saber porquê, apenas podem ser salvas por um colono - e, ainda por cima, incapacitado. Os paralelismos com a atitude beligerante americana são tão evidentes que perdem toda a força. A força rebelde ganha legitimidade apenas porque há alguns humanos que a apoiam. Zizek passa desta realidade - duplamente virtual - para os nossos dias, falando da rebelião que neste momento está a ter lugar no estado indiano de Orissa (artigo de Arundhati Roy aqui), uma reacção contra a planeada exploração dos recursos minerais (no caso, bauxite) da região por empresas de exploração mineira. O grupo rebelde é considerado uma organização terrorista (essa bela capa usada a torto e a direito nos dias de hoje) pelo Governo indiano, apesar dos seus poucos recursos e quase nenhum dano infligido no inimigo que combate.
O cinema tem o poder de manipular as emoções do espectador, e a maior parte das vezes isso pode ser libertador. Mas à emoção, imediata, instintiva, deve suceder sempre a razão; dos milhões de espectadores que viram Avatar, quantos sentiriam simpatia pela tribo dos Kondh, que neste preciso momento passa por uma situação semelhante ao povo Na'vi? Em que momento é que a ficção ganha mais peso do que a realidade?

(Publicado inicialmente no Arrastão)

17/02/10

Nas nuvens



Aquilo que terá levado Nas Nuvens até às nomeações para os Óscares - a consciência social, o interesse pelo espírito do tempo, no caso a crise económica - será o menos interessante no filme, principalmente porque Jason Reitman mostra pouca vontade de intervir na sociedade. O que terá convencido os membros da Academia de Hollywood foi antes a riqueza das personagens, o desempenho dos três actores nomeados para os Óscares (George Clooney, belíssima Vera Farmiga, excelente Anna Kendrick) e a inegável sagacidade que o realizador mostra na direcção de actores - confirmação do que foi mostrado em Juno - e ainda bem. Mas o filme vai um pouco mais longe, no modo como mostra os espaços vazios da modernidade, os não-lugares de que Marc Augé fala, pontos de passagem entre lugares - os aeroportos, os hotéis, os aviões. E, sobretudo, as empresas que dispensam funcionários e se vão esvaziando de vida, esses novos não-lugares criados pelo rebentamento das sucessivas bolhas de optimismo que o crescimento económico foi produzindo - a carga política do filme que realmente interessa. Neste ponto, há cenas exemplares - a sala com cadeiras vazias empilhadas onde Natalie espera, o escritório onde apenas resistem três ou quatro secretárias, e sobretudo a sequência do primeiro despedimento real remoto, que tem lugar, para cúmulo, em Detroit, uma das cidades americanas onde se sente mais intensamente o efeito da recessão americana. A montagem paralela, que vai mostrando o rosto de Ryan Bingham, Natalie e do homem que está a ser despedido, no ecrã e fora dele, e que acaba por estar na sala ao lado, a olhar para o monitor, é brilhante. A desumanização do capitalismo nunca terá sido tão bem filmada, e já se fizeram muitas obras panfletárias que podem comprovar a minha afirmação, podemos ter a certeza disso. Vale mais aquele plano, do desempregado a chorar no monitor que é espreitado por quem acabou de despedir do que qualquer manifesto de Michael Moore, por exemplo. O cinema como transcendência da realidade representada.

15/02/10

Invictus



John Carlin, autor do livro a partir do qual foi feito Invictus, afirmou numa entrevista que a melhor época e lugar para um jornalista trabalhar foram os anos 90, na África do Sul. Quando regressou a Washington, apanhou com o escândalo Clinton/Monica Lewinski, depois de ter testemunhado o fim do apartheid e a reconciliação nacional encetada por Nelson Mandela. Numa época de descrédito geral dos políticos, Mandela continua a ser um exemplo certamente digno de inveja por parte de quem tem boas intenções e de vergonha por parte dos outros.
Clint Eastwood viu em Mandela mais um dos seus heróis solitários, de ideias fixas, casmurros que acabam por provar estar certos no fim. O filme , apesar de resvalar aqui e ali para o mau gosto - as câmaras lentas, a banda-sonora discutível, as panorâmicas sobre os bairros de lata de Joanesburgo - é um hino ao extraordinário percurso do político mais marcante da segunda metade do século XX, uma figura maior que a vida que pedia nada menos que a hagiografia que o realizador lhe dedica. Mas é também a história pessoal da relação do político com o outro herói do filme, o capitão dos Springboks, François Pienaar (Matt Damon), que no final do jogo acaba por ter uma daquelas frases grandiosas que julgamos serem exclusivas da ficção - "não eram 65000, mas sim 43 milhões de sul-africanos a apoiar-nos".
A unidade temporal - um ano apenas - que acaba por concentrar toda as circunstâncias de uma vida, é o segredo do filme: o encarceramento de trinta anos, a libertação, a vitória nas eleições, o respeito da minoria branca, antigos opressores aceites na nova África do Sul, país do arco-íris. O desporto, em especial os grandes acontecimentos desportivos, ultrapassa em muito o seu universo; várias vezes Mandela (grande Morgan Freeman) repete que o interesse mostrado pelo acontecimento é político. Quando chegamos aos derradeiros jogos, o torneio transforma-se em batalha - a vontade dos guerreiros, o suor, o sangue, a superação. Os planos aproximados captando as formações no campo de rugby descrevem em tons heróicos o esforço dos jogadores, e por momentos estamos num filme de guerra, em pleno combate.
Luta contra a adversidade, superação: o território preferido de Clint Eastwood, a sua linguagem. O filme não é perfeito - é melhor do que outro qualquer faria com a mesma história.

(Texto publicado, originalmente, no Arrastão)