02/08/10

Duas mulheres

Uma das principais preocupações do cinema português dos últimos quinze anos tem sido a reflexão sobre o estado de coisas em Portugal. Com o correr do tempo, seria natural que assim acontecesse; a revolução dos cravos parece ser um acontecimento que gera mais divisão do que união na sociedade, e chegou a altura de pensarmos na herança que ficou dos ideais de Abril e no país em que nos acabámos por transformar. João Botelho tem feito isso, João Canijo também, e, em certa medida, Fernando Lopes, na sua adaptação do romance de José Cardoso Pires, O Delfim, também o fez, continuando essa reflexão de forma mais evidente nas obras que se seguiram, Lá Fora e Os Sorrisos do Destino.
João Mário Grilo, que, além de realizador, tem sido um dos teóricos e críticos de cinema mais estimulantes em Portugal, também decidiu enveredar por esse caminho no seu mais recente filme, Duas Mulheres, tomo 1 de uma série que ele chama A Condição Humana. Curiosamente, lembrei-me da trilogia de Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza, constituída pelos romances Os Espaços em Branco, A Alma dos Ricos (Espelho Mágico, de Manoel de Oliveira, é uma adaptação) e Jóia de Família, brilhante retrato de uma certa burguesia que se perdeu e da nova que surgiu no seu lugar. E não anda muito longe do universo de Agustina, este filme. O argumento do escritor Rui Cardoso Martins e de Tereza Coelho procura um instantâneo da actualidade, dominada pelas notícias de uma anunciada crise financeira e das repercussões que esta terá num Portugal depauperado e em perpétua indefinição de identidade. A seriedade do assunto não permite que o filme se aproxime da ironia desencantada de Bessa-Luís, apesar de uma ou outra sequência - o aniversário do comandante, o primeiro jantar dos accionistas da empresa - lembrar o humor corrosivo (mas distante da sátira) do João Botelho de Tráfico.
Temos assim apresentado o tom geral do filme. O material de partida, apesar de não ser uma novidade no cinema português, seria sempre interessante. João Mário Grilo consegue transformar a história de um casal burguês, Joana (a sempre fabulosa Beatriz Batarda) e Paulo (um certeiro Virgílio Castelo), na imagem, fria e cínica, de um país. A companhia de Paulo passa por um momento de definição provocado pela crise financeira. O casamento de Paulo com Joana, bem composto e aquilo que a sociedade espera que um casamento daqueles seja (o tratamento por "você", a pose nos jantares sociais, o acompanhamento da "carreira" de Paulo por parte da boa esposa), é tão frágil como a economia mundial. Joana, uma psiquiatra que ascendeu socialmente e "casou bem", sente-se fora do aquário e não sabe o que é a felicidade - a determinada altura, confessa a um amigo (João Perry) que é... "feliz... pelo menos sou casada e tenho um filho". Até que conhece Mónica (Débora Monteiro), call-girl em plena crise existencial que leva Joana a trair o marido.
O medo, essa categoria maldita que José Gil associou à existência de um povo, é o que leva Mónica a encontrar Joana. O medo de Mónica, confessado, é tão real, contudo, como o medo de Joana, de voltar a uma existência marcada pela falta de ambição, a um regresso a essa "classe média baixa" de onde veio, pela qual ela mostra um profundo desprezo. Paulo tem medo do escândalo, da sociedade descobrir o pecado de Joana, e por isso prefere continuar a manter as aparências, num tempo em que a empresa precisa de "estabilidade" e "confiança do mercado". É este o Portugal de agora, e a câmara de João Mário Grilo filma tudo de forma precisa, cirúrgica. Não há sensacionalismo, nem caminhos fáceis, no cinema de João Mário Grilo. Poder-se-ia chamar cinema de tese, mas julgo que a classificação seria redutora. Existe, não duvidemos, uma ideia que o realizador tenta explicar ao longo do filme. Mas não há qualquer retórica no modo como o faz. Há, sim, uma qualidade técnica invulgar (estamos longe, muito longe, dos problemas com a captação de som e a dicção dos actores que o cinema português apresentava noutros tempos), servida por uma fotografia, montagem e direcção de actores impecáveis, e um modo certeiro de filmar um mundo em que as aparências dominam e em que os sentimentos e, sobretudo, a verdade, são conceitos estranhos, esquecidos. Excelente filme, um retrato amargo, sincero, sentido, de um país que se vai perdendo de si próprio.

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