A minha geração, a rasca ou à rasca, a primeira a sofrer as consequências da crise perpétua de Portugal, a geração que lutou contra as propinas - em vão, a geração dos professores a prazo que mais parecem caixeiros-viajantes, a geração de que os mais velhos não gostam e que os pais toleram, a geração que ainda não saiu de casa dos progenitores por não ter dinheiro para uma vida independente ou por comodismo consumista, a geração com uma taxa de desemprego que ultrapassa os vinte por cento, a geração precária, trabalhando anos e anos para o mesmo patrão (seja o Estado ou privado) a passar recibos verdes, a geração a que foi prometido o mundo se conseguisse uma licenciatura e que agora trabalha em call-centers, caixas de supermercado ou livrarias, a geração dos eternos estudantes, do bacharelato à licenciatura ao mestrado ao doutoramento e ao pós-doutoramento com via verde garantida para o desemprego ou um emprego abaixo da escolaridade ou a emigração em busca de um trabalho numa empresa ou universidade estrangeiras, a geração explorada por patrões de vistas curtas, geração que não sabe muito bem quais são as lutas justas, ou as válidas, ou sequer que lutas há para lutar, a geração que cresceu num Portugal optimista e chegou à idade adulta num país de rastos, sem confiança no presente nem esperança no futuro. A geração dos anos 80, das séries importadas, do Verão Azul e de Miami Vice, a geração da Spur Cola e das bombokas, a geração do Marco e da Galactica, a geração do Regresso ao Futuro e dos Gremlins, a geração que cresceu synth pop e se descobriu grunger quando entrou na universidade, a geração que tornou o alternativo mainstream e o mainstream respeitável. André Valentim Almeida decidiu fazer um comentário e, como membro de pleno direito desta geração, não conseguiu que fosse exibido comercialmente. Por isso disponibilizou-o on line. Sim, esta é também a geração que melhor consegue viver com todas as dificuldades, a geração "canivete suíço e uma pastilha do MacGyver", a geração que resolve problemas, que sobrevive. O futuro. É ver o tal documentário, que vale muito a pena, aqui.
31/08/10
29/08/10
28/08/10
23/08/10
Dançar
Adam Kohn, sobrevivente do Holocausto, decidiu celebrar em Auschwitz e outros lugares da sua via sacra (o gueto de Varsóvia, o museu que Hitler quis criar para assinalar o extermínio dos Judeus) a sua sobrevivência. O vídeo, ideia da filha, mostra Kohn e a sua família dançando nestes lugares ao som de "I Will Survive", de Gloria Gaynor - e também de Leonard Cohen, no final. Uma celebração, sem dúvida, da resistência à morte e à mais absurda violência, uma espécie de riso na cara do destino, contra todas as probabilidades e contra - também - as críticas dos zelotas, os de sempre, quem julga deter o exclusivo do sofrimento e reclamou de tal sacrilégio. Um exemplo.
Notícia aqui.14/08/10
Carros, livros e filmes
Não há férias que resistam a uma onda de calor - calma, dizem os meteorologistas, ainda é cedo para isso - principalmente quando se decidiu há muito não procurar o Sul. A água fria, revolta, o vento a bater o areal, belas praias que julgamos ainda manterem uma virgindade clandestina, horas suportáveis que terminam com algumas imperiais e petisco a acompanhar, uma esplanada sobre o mar. A alternativa é ficar em casa, e aqui o único consolo é uma ventoinha, mais ice tea e muita televisão. Filmes atrás de filmes, integral de Clint Eastwood nos canais TvCine - estranha época para descobrir as obras-primas perdidas dos primeiros tempos (The Outlaw Josey Wales, Honkytonk Man) e saber que o realizador não é apenas o último dos clássicos, essa frase para vender qualquer coisa que transcende a ideia que os publicistas querem passar. É o descendente mais fiel de John Ford, é certo, mas é sobretudo o depositário de uma tradição do cinema feito em Hollywood que privilegia a palavra e o trabalho dos actores, a história e as personagens que a transcendem. A câmara está ali, rigorosa, elegante, capturando e evidenciando esse material de base, a essência do cinema clássico.
Filmes e séries, dieta rigorosa de Top Gear (e The Ultimate Survivor como aperitivo), ao fim da tarde e à noite, tentando recuperar as temporadas perdidas de uma das melhores séries de humor da última década. O programa de Jeremy Clarkson (devidamente acompanhado por James May, Richard Hammond e o incomparável Stig) é um achado, umas das mais vertiginosas reviravoltas a que um conceito pode ser submetido: como fazer um programa sobre carros? Se olharmos para os exemplos nacionais, o deserto: test drive bocejantes, raparigas talentosas, mas não no trabalho que fazem, comparações de preços e outras peças convencionais e sensaboronas que me fazem lembrar o tempo todo que eu nem conduzir sei. Verdade absoluta de que me esqueço quando vejo Top Gear.
E pouca leitura, que o calor não deixa. Há cerca de quinze anos que não lia Vergílio Ferreira, se descontarmos uma tentativa que se ficou pelo início, há uns tempos. Um dos autores que li com maior espanto, por volta dos vinte. Aparição foi a revelação que se seguiu a Na Tua Face, o primeiro que li dele, o que eu mais gostei, que isto dos gostos pouco tem a ver com cânones e unanimidades críticas. Para Sempre a meio, e houve qualquer coisa que se perdeu pelo caminho. Certamente não foi Vergílio, fui eu. As belíssimas frases aparecem, aqui e ali, parágrafos exemplares, e aquele vaivém temporal, ao ritmo incerto da memória. Mas - os capítulos cheios de um rancor indefinido, o narrador que se deixa tomar pela voz do autor (imagino) e uma certa imprecisão no tom da narrativa. É a história de um amor, uma recolha do que se foi perdendo, o relato de um fim que se aproxima?
Julgo não ser o único a ler com atenção as primeiras frases, parágrafos, dos livros, e a admirá-los por si só, independentes do que vem a seguir. Frequentemente, obrigam-me a continuar a leitura, e raras são as vezes em que me arrependo - um escritor terá de investir tudo nestas primeiras palavras, convencer o leitor a acreditar no que escreve, ir com ele. Começa assim:
Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. E uma comoção abrupta - sê calmo. Na aprendizagem serena do silêncio. Nada mais terás que aprender? Nada mais. Tu e a vida que em ti foi acontecendo.
Uma tarde de Verão, o calor de Agosto. É por aqui.
10/08/10
2666 - a sequela
Havia um tijolo literário que me estava atravessado na garganta. Peguei nele diversas vezes, folheei, espreitei parágrafos, li páginas inteiras, frases, confirmei que a dupla de tradutores é de qualidade (li outros livros trabalhados por eles), deixei de parte, fui debicando os milhares de caracteres debitados em todo o tipo de publicações insuspeitas - e outras menos, como blogues - elogiando tal obra, tecendo loas que, aqui e ali, não desmereciam uma qualquer ode de Píndaro, voltei a insistir, uma e outra vez, até que desisti e decidi fazer uma espécie de introdução ao autor.
Aqui há uns meses, comecei a ler, prenhe de expectativa, O Terceiro Reich, do omnipresente Robert Bolaño, que é dele que falo. Aquilo a início pareceu-me estranho - um alemão amante de jogos de guerra perdido numa aldeia balear espanhola? Insisti, até porque recordo com prazer as horas passadas, na minha adolescência, debruçado sobre um tabuleiro onde soldados de plástico evoluiam em território inimigo conquistando regiões e países à velocidade ditada pelas pintinhas dos dados que eram atirados ao sabor de um ressalto provocado pela irregularidades do terreno - a mesa da sala. No livro, os dias vão passando entre o ritmo de um jogo ensaiado com uma personagem sinistra, pele queimada e mistérios por contar (oooooh) e a vida nocturna da localidade - que todos os que fizeram viagens de finalistas a Benidorm ou Ibiza saberão reconhecer, enlevados pela doce música da nostalgia. Comecei a pensar, a determinada altura, nos prós e contras do livro: jogos de tabuleiro - um pouco silly (se fosse xadrez, sempre poderíamos perdoar o lugar-comum) mas de algum modo reconfortante; praia - bom, mas, por amor de Zeus, não as da costa espanhola; personagens sinistras de pele queimada - humm... Dan Brown não escreveu uma coisa parecida? E por aí fora, por entre uma namorada que não chega a existir enquanto personagem, dois espanhóis que são o cliché de qualquer coisa, uma dona de hotel teutónica que desperta sonhos adormecidos no jogador e vagas - e óbvias - analogias à 2ª Guerra Mudial. Também há sonhos contados minuciosamente, que deve ser uma das coisas mais aborrecidas que nos podem acontecer, tanto na vida real como na literatura, e uma técnica narrativa comum a muitos estudantes de escrita criativa, a narrativa na primeira pessoa em forma de diário (isto não é um elogio). E o estilo, claro, o estilo, ausente, zero, sem uma metáfora marcante ou uma frase cantante, estilo seco, tão seco como um pau no deserto ou a pele do Queimado (juro que Bolaño usa, algures, esta imagem), e não falo do estilo de um Hemingway, lacónico e certeiro, ou de um qualquer escritor de policiais hard-boiled - nestes casos, a simplicidade da linguagem visa um objectivo que acaba por ser concretizado. Em Bolaño, há várias tentativas de embelezar o texto que falham. A secura, parece-me, é o resultado da rapidez de escrita. Mas ler duzentas e tal páginas sem um brilho que seja, chegando ao fim sem perceber muito bem o propósito daquela narrativa - a tal referência aos "horrores" da 2ª Guerra Mundial, que, mais para a frente, se torna explícita, é a única segunda leitura que se pode fazer do romance - será pedir demasiado. E o resto?
Sendo assim, admito a minha derrota - discordando de meio mundo, incluindo gente que muito prezo. Não avançarei pela noite escura de 2666. A perda irreparável, se quiserem, fica apenas comigo. Ninguém é perfeito.
(Publicado inicialmente no Arrastão).
08/08/10
Let's Go Surfing
Nunca se deve menosprezar o poder do assobio (esqueçamos os Scorpions) numa música pop, principalmente quando ela fala de praia, sol e miúdas. Os coros uma oitava acima e as harmonias vocais também costumam resultar - os Beach Boys deixaram uma lição valiosa. Junte-se a estes pressupostos a natureza passageira do Verão e já se pode ter uma boa canção. E se houver uma fixação pelos sons da new wave, versão anos 80, principalmente a facção Joy Division/New Order, sendo que aos primeiros pode-se ir buscar a bateria minimalista e a guitarra limitada de Bernard Sumner (os Cure também andam por aqui) e aos segundos a leveza vocal que estava ausente dos primeiros (a morte de Ian Curtis permitiu essa evolução), temos material mais do que suficiente para um feel good hit of the summer. Há uns anos foram os Peter, Bjorn and John (imediatamente seguidos de David Fonseca), agora há The Drums, com um álbum (Summertime! é o EP de 2009 que também inclui esta faixa) entre a nostalgia urbano-depressiva e a euforia do som de Brooklyn, versão Vampire Weekend e LCD Soundsystem, com passagem pela pop dos 80 (a minha década preferida), de Housemartins a Jesus and Mary Chain. E os Beach Boys sempre a espreitar. Combinação que primeiro se estranha, mas depois entranha-se, e bem. Durará o que durar esta estação. E já é muito.
06/08/10
05/08/10
04/08/10
03/08/10
02/08/10
Duas mulheres
Uma das principais preocupações do cinema português dos últimos quinze anos tem sido a reflexão sobre o estado de coisas em Portugal. Com o correr do tempo, seria natural que assim acontecesse; a revolução dos cravos parece ser um acontecimento que gera mais divisão do que união na sociedade, e chegou a altura de pensarmos na herança que ficou dos ideais de Abril e no país em que nos acabámos por transformar. João Botelho tem feito isso, João Canijo também, e, em certa medida, Fernando Lopes, na sua adaptação do romance de José Cardoso Pires, O Delfim, também o fez, continuando essa reflexão de forma mais evidente nas obras que se seguiram, Lá Fora e Os Sorrisos do Destino.
João Mário Grilo, que, além de realizador, tem sido um dos teóricos e críticos de cinema mais estimulantes em Portugal, também decidiu enveredar por esse caminho no seu mais recente filme, Duas Mulheres, tomo 1 de uma série que ele chama A Condição Humana. Curiosamente, lembrei-me da trilogia de Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza, constituída pelos romances Os Espaços em Branco, A Alma dos Ricos (Espelho Mágico, de Manoel de Oliveira, é uma adaptação) e Jóia de Família, brilhante retrato de uma certa burguesia que se perdeu e da nova que surgiu no seu lugar. E não anda muito longe do universo de Agustina, este filme. O argumento do escritor Rui Cardoso Martins e de Tereza Coelho procura um instantâneo da actualidade, dominada pelas notícias de uma anunciada crise financeira e das repercussões que esta terá num Portugal depauperado e em perpétua indefinição de identidade. A seriedade do assunto não permite que o filme se aproxime da ironia desencantada de Bessa-Luís, apesar de uma ou outra sequência - o aniversário do comandante, o primeiro jantar dos accionistas da empresa - lembrar o humor corrosivo (mas distante da sátira) do João Botelho de Tráfico.
Temos assim apresentado o tom geral do filme. O material de partida, apesar de não ser uma novidade no cinema português, seria sempre interessante. João Mário Grilo consegue transformar a história de um casal burguês, Joana (a sempre fabulosa Beatriz Batarda) e Paulo (um certeiro Virgílio Castelo), na imagem, fria e cínica, de um país. A companhia de Paulo passa por um momento de definição provocado pela crise financeira. O casamento de Paulo com Joana, bem composto e aquilo que a sociedade espera que um casamento daqueles seja (o tratamento por "você", a pose nos jantares sociais, o acompanhamento da "carreira" de Paulo por parte da boa esposa), é tão frágil como a economia mundial. Joana, uma psiquiatra que ascendeu socialmente e "casou bem", sente-se fora do aquário e não sabe o que é a felicidade - a determinada altura, confessa a um amigo (João Perry) que é... "feliz... pelo menos sou casada e tenho um filho". Até que conhece Mónica (Débora Monteiro), call-girl em plena crise existencial que leva Joana a trair o marido.
O medo, essa categoria maldita que José Gil associou à existência de um povo, é o que leva Mónica a encontrar Joana. O medo de Mónica, confessado, é tão real, contudo, como o medo de Joana, de voltar a uma existência marcada pela falta de ambição, a um regresso a essa "classe média baixa" de onde veio, pela qual ela mostra um profundo desprezo. Paulo tem medo do escândalo, da sociedade descobrir o pecado de Joana, e por isso prefere continuar a manter as aparências, num tempo em que a empresa precisa de "estabilidade" e "confiança do mercado". É este o Portugal de agora, e a câmara de João Mário Grilo filma tudo de forma precisa, cirúrgica. Não há sensacionalismo, nem caminhos fáceis, no cinema de João Mário Grilo. Poder-se-ia chamar cinema de tese, mas julgo que a classificação seria redutora. Existe, não duvidemos, uma ideia que o realizador tenta explicar ao longo do filme. Mas não há qualquer retórica no modo como o faz. Há, sim, uma qualidade técnica invulgar (estamos longe, muito longe, dos problemas com a captação de som e a dicção dos actores que o cinema português apresentava noutros tempos), servida por uma fotografia, montagem e direcção de actores impecáveis, e um modo certeiro de filmar um mundo em que as aparências dominam e em que os sentimentos e, sobretudo, a verdade, são conceitos estranhos, esquecidos. Excelente filme, um retrato amargo, sincero, sentido, de um país que se vai perdendo de si próprio.
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