23/01/10

O trabalho da memória

Dois dos livros que li recentemente surgiram em sequência - a leitura do segundo como complemento do primeiro. O caminho faz-se quase sempre em ziguezague – não gosto de impor programas, ordem, às minhas leituras – mas acaba por haver um ponto de contacto ao longo do percurso. Despertou-me primeiro a atenção Ernestina, de J. Rentes de Carvalho, agora mais conhecido por cá, depois dos merecidos artigos em jornais aproveitando a republicação da sua obra pela editora Quetzal. Dele já lera um livro ou outro e fui sendo leitor fiel do seu blogue, que leva o título de um dos seus volumes memorialistas, Tempo Contado. Um mestre pouco conhecido, para não dizer desconhecido, apesar de cada livro por ele publicado na Holanda (país onde vive desde os anos 60) vender o suficiente para continuar a ser editado. Não sei se a falha será colmatada – seria bom que o fosse, que o reconhecimento é sempre bem-vindo.
Ernestina é um livro de memórias que acompanha os primeiros anos de vida do escritor e termina na adolescência, um período de tempo que vai desde antes do seu nascimento, em 1930, até aos anos 40. O mais notável no livro é a descrição, viva, hábil, fluida, de um tempo de transição no país. Esqueçamos, no entanto, implicações políticas; Rentes de Carvalho conta apenas a sua história – se acaso aparece uma ou outra referência aos tempos conturbados que se viviam, é por meras razões de ordem biográfica. Nascido numa aldeia de Trás-os-Montes, Estevais, e tendo partido cedo para viver com os tios em Vila de Nova de Gaia, Rentes de Carvalho conseguiu ultrapassar as barreiras da ruralidade e da pobreza, para “chegar longe”, expressão que não é apenas um lugar-comum mas um mote para a sobrevivência do povo transmontano.
A consciência subtil de que uma vida é uma superação de vidas anteriores, dos pais e dos avós, é também um dos temas principais de As Pequenas Memórias, de José Saramago, o ponto seguinte no meu percurso de leitor. Saramago nasceu em Azinhaga, aldeia do concelho da Golegã erguida da lezíria do Tejo, à beira do Almonda que no rio maior vai desaguar. Aos quatro anos de idade foi viver com os pais para Lisboa, mas as visitas à aldeia onde nasceu eram regulares – o livro vai saltando de episódio em episódio, na cidade e no campo, ao ritmo incerto da memória do escritor. O estilo é o de sempre – um primor clássico que me parece inultrapassável na literatura portuguesa contemporânea, apesar de Mário de Carvalho – e Saramago quase nunca cai naquele tom moralmente opinativo que lhe é característico. Poder-se-ia esperar que, tendo crescido no meio da pobreza – quartos alugados para três em Lisboa, casas de chão de terra no Ribatejo -, Saramago optasse por um ponto de vista vagamente influenciado pela ideologia que lhe é cara; assim não sucede. Não há romantismo na infância, e a principal força do livro reside na fragmentação temporal – não há uma continuidade temporal na narrativa, o livro tenta imitar o funcionamento da memória. Em duas passagens deliciosamente metaficcionais, Saramago chega a corrigir factos que antes tinha enunciado, pedindo desculpa pelas imprecisões cometidas.
De Ernestina, nome da mãe de Rentes de Carvalho, à avó de Saramago, a distância é curta. Mais curta do que o caminho percorrido pelo comboio que leva Rentes de Carvalho à sua aldeia – horas e horas a levar com a fuligem da locomotiva a vapor e o cheiro da comida das gentes que também regressam à aldeia. Mais curta do que a distância que vai da Azinhaga a Santarém, a pé e levando uma vara de porcos para venda numa feira, a viagem que Saramago e um tio fizeram para trazer algum dinheiro mais à família. O tempo que agora parece fugir durava mais antes – os dois escritores, de outro tempo, sabem bem medir, distorcer, a vida que por eles passou. E servir o resultado a nós, leitores, de forma primorosa. Aprisionar o tempo.

(Texto originalmente publicado no Arrastão)

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