Jacques Audiard, o realizador de Um Profeta, não se cansou de dizer, nas entrevistas a propósito da estreia do filme, que este pretendia ser um retrato da França actual. Costumo desconfiar de intenções moralizadoras e de filmes cujo objectivo seja retratar a actualidade; é por isso que não gosto da obra de Alejandro Inãrritu ou de certos filmes de consciência liberal que a indústria americana por vezes produz. Não é uma questão de resultado final, mas de vontade: quanto mais um realizador se esforça por trazer para o ecrã as suas preocupações de ordem ética mais corre o risco de esquecer a forma. As excepções são sempre obras-primas, e penso em alguns filmes de John Ford (As Vinhas da Ira, O Vale Era Verde) ou em O Couraçado Potenkin, de Eisenstein, ou no acto de contrição de Elia Kazan depois da traição à classe que se chama Há Lodo no Cais - devo confessar que eu seria um dos que aplaudiriam Kazan naquela cerimónia dos Óscares em que a metade liberal da Academia se manteve quieta, mas percebo a razão desta.
Pensar a sociedade francesa actual, imagino que será uma tarefa difícil - portanto, entrei na sala de cinema na expectativa. O filme é um drama passado na prisão e acompanha um jovem delinquente magrebino, El Djebena (Tahar Rahim), quando este é sentenciado a quatro anos. O mais interessante é o que o filme não tem de denúncia social - a relação que Djebena mantém com outro condenado, Luciani (Niels Arestrup), mafioso corso que o inicia e o passa a proteger depois de o obrigar a matar alguém que lhe é incómodo. O pai ausente renasce em Luciani - o olhar que nos é oferecido é o de Djebena: onde nós vemos crueldade ele vê algum afecto, mas cedo começa a perceber que Luciani olha para ele como um criado, um objecto das suas maquinações criminosas. A candura inicial de Djebena vai desaparecendo, há uma evolução que nos vai mostrando de que modo nasce um criminoso; ou, a leitura mais interessante, Djebena simplesmente abraça o seu destino - ele é o Profeta - e a ingenuidade do início é aparente, uma forma de conseguir sobreviver à vida em clausura.
Se é verdade que Audiard é bem sucedido no que toca à caracterização das personagens - existe uma evolução de Djebena, o cliché do delinquente não está sequer em causa - há, contudo, certas ratoeiras que bem podiam ter sido evitadas: na prisão, apenas vemos magrebinos, africanos subsarianos, ciganos e corsos. Dei por mim a pensar se não existirão brancos do continente condenados em França. Eu sei que é um pormenor, mas é também uma espécie de paternalismo incomodativo, como se a realidade francesa de integração dos imigrantes, que passa pelo crescimento de guetos fora do espaço habitado pelas classes mais abastadas, tivesse perfeita demonstração na obra de Audiard - o país que este pretendeu retratar será tão separador de águas como a obra por ele criada. Audiard mostra não ter sentido verdadeira empatia pelo universo que decidiu criar, e isso foi para mim muito mais evidente ao rever Casa de Lava, de Pedro Costa, pouco tempo depois de ter visto Um Profeta - é indesmentível (e confessado em entrevistas) o amor que Costa tem aos cabo-verdianos, aos imigrantes e aos desenraizados que acompanha em registo quase documental - Costa foi um habitante do bairro das Fontainhas enquanto lá filmou Ossos e No Quarto da Vanda, foi um irmão de Ventura em Juventude em Marcha. Audiard limita-se a ser um simples observador das mudanças que vão ocorrendo. É pouco.
(Publicado inicialmente no Arrastão)