10/05/07

Vonnegut e a arte

Contaram um total de vinte quadros abatidos naquela operação de limpeza. Alguns expressionistas abstractos, claro. Os mais importantes. De Kooning. Pollock. Terry Kitchen. E, principalmente, Sarkis Karabekian. A grande tela vazia do fim da vida. Estava lá. Alguns críticos não resistiram à possibilidade de ironia. Entre uma e outra homenagem ao pintor arménio, a referência mais ou menos velada ao genocídio. Alguns dez milhões de seres humanos. O que é uma vintena de quadros, perto disso? Retirados da parede do museu, carregados para uma alta pira ao largo, incendiados. Havia quem gritasse no meio da multidão. Apoiavam a operação. A tela arde melhor do que muitos livros, madeira. Tinta correndo por entre as pessoas, figuras desfeitas atirando o seu corpo em direcção ao céu. Imagine-se o ar de espanto de Karabekian, lá de cima, ao ver o desaparecimento final de algumas das suas obras. Subindo ao seu encontro. Como espíritos reencontrando o seu lugar, entre os anjos. Belo cortejo de almas mortas, conduzido pelo seu pastor, venerável sátiro da tragédia humana. Kurt Vonnegut entre os mortos, sem ironia. Milhões de massacrados e algumas telas no seu lugar.

[Sérgio Lavos]

Sem comentários: