18/12/23

2023 a desaparecer


Escrever num blogue em 2023 é como escrever em papiro cerca de 1450, quando o pergaminho era já há muito tempo o suporte mais usado para a escrita e a imprensa tinha acabado de ser inventada na Europa (os chineses há vários séculos que dominavam a tecnologia).
Mas em 2023 acontece o mesmo que tinha acontecido em 2005: sempre fui lido por poucos seres humanos, ninguém vai dar importância, sou a árvore no meio da floresta quando não está lá ninguém a vê-la. 
Até porque se há algo que resiste em 2023 é o papel, e o valor sagrado das palavras escritas e impressas em algo material, e isto não é papel. No outro dia perguntei aos meus alunos qual achavam que iria o ser o suporte que teria mais possibilidade de ter desaparecido daqui a mil anos. Como são ainda crianças, disseram-me que o que está on-line sobreviverá e o que existe em papel desaparecerá. Como se não tivessem chegado até nós manuscritos com milhares de anos e o que está on-line não dependesse de servidores que não saberemos se ainda irão existir daqui a mil anos.
De qualquer maneira, ninguém sabe, porque o tempo é esse comboio que vem na nossa direção e se desvia no último momento, e quando damos por ele já está para trás das costas. Ou então nem sequer existe, como defende o físico italiano Carlo Rovelli na sua poética obra A Ordem do Tempo.
E este último livro vai já para o topo da lista dos meus livros preferidos deste ano, está decidido. Pode-se falar de números e coisas certas recorrendo a metáforas, à poesia. A sua própria poesia, e a de Horácio, que foi usada como epígrafe de cada um dos capítulos.
Calhou bem Frederico Lourenço ter traduzido para português a obra completa do poeta latino, para a qual fui levado novamente pela mão de Rovelli, como há décadas tinha sido levado por Ricardo Reis e a sua Lídia. Também Frederico me trouxe durante o ano que termina poesia grega, escolhos trazidos pelo rio do esquecimento onde ficaram perdidas todas as palavras que o tempo e os homens destruíram - os fragmentos de poetas gregos que não desapareceram. A perplexidade de sabermos que tudo o que lemos agora é o que resta do que foi eliminado ao longo dos séculos é tão inútil como olhar para trás sem podermos restituir à linha do tempo os novelos de que nos livrámos, as escolhas que deitámos para o lixo.
Este ano escolhi, e assim foi, e não escolhi outras coisas que o acaso me trouxe. Por exemplo: ir a Salamanca em julho e ver numa livraria próxima da catedral o livro de Irene Vallejo, "El Infinito en un Junco", do qual já tinha visto algumas boas referências. E a leitura desse livro foi um prelúdio para a viagem a Nápoles muitos dias depois. Uma cidade assombrada pela morte e pela celebração da vida - entre o caos e a ameaça, a beleza. E depois, em Pompeia não senti o que Rossellini sonhou na sua Viagem a Itália, mas no meio da beleza, da tragédia e do erotismo pré-cristão reconheci nas pedras o passado do que somos. 
Horácio escreveu poemas sobre o amor, Safo também, e na vila dos papiros de Herculano havia orgias organizadas pelo cônsul Lúcio Calpúrnio Pisão Cesonino. Cesonino era político e um amante apaixonado da cultura grega. Tinha na sua vila milhares de papiros que foram descobertos no século XVIII, esses papiros contêm centenas de milhar de palavras que podem ou não compor obras esquecidas da Antiguidade. Não sabemos, porque os papiros (já por si um suporte frágil) foram carbonizados durante a erupção do Vesúvio em 79 d.C. Investigadores tentam, há mais de 200 anos, extrair dos frágeis livros as palavras que poderão ter sido escritas por Platão, Aristóteles, Hesíodo, Píndaro, Safo. Não sabemos, e os papiros de Herculano são como o gato de Schrödinger do mundo antigo: enquanto não sabemos o que lá está, poderá estar lá qualquer coisa, até o segundo livro da Poética de Aristóteles. Mas se tentarmos descuidadamente descobrir o que lá está, desvanece. 
Imaginemos então o que poderá estar escrito nesses papiros, mais material do que isto que escrevo, mais material do que tudo o que está agora disponível on-line, e ao mesmo tempo tão diáfano como todos os poemas que apenas existiram na sua forma dita, antes da invenção da palavra escrita.
Terei lido outros livros em 2023, mas este texto não é sobre isso.

08/12/23

Incertezas

Tomamos por verdade o que nos dizem nos écrans, não sabendo de quem é essa verdade, se dos ventríloquos, se dos bonecos que aqueles manipulam. A verdade deixou ser autoritária, e uma autoridade, e passou a ser uma gota de água num oceano de incertezas e mentiras. Se Deus não morreu com Nietzsche, certamente está morrendo agora.

22/11/23

Roseta

Horto das coisas guardadas: encontrei uma chave para a compreensão de todas as línguas mortas.

11/10/23

Normalidade

Antes, os artistas malditos matavam-se de amor, ou de fome, ou de melancolia. Hoje em dia, passeiam-se nas grandes avenidas da sociedade e são tratados a pãezinhos de doença mental. Belos eram os tempos dos loucos, dos excêntricos e dos destravados, dos que renunciavam à cómoda doença da normalidade. 

10/10/23

Reflexo

Está na tua frente a verdade, e não a reconheces. Em vez disso, olhas para o espelho onde te vês refletido, ali ao lado da verdade. Enquanto o teu reflexo te enganar, tudo está bem.

06/10/23

Pular

 O homem que dava pulos ficou sem pernas e agora anda por aí, de muleta na mão, pedindo esmola. 

04/10/23

Coisas

Uma coisa. Atrás de outra coisa. E outra coisa mesmo. Somatório de tijolos construindo uma casa que recusa a habitação.

14/02/23

Ajudar a morrer

Nesse vento eu respiro.
Na frente da casa eu convido quem queira entrar
nesses corredores onde despeço
o tempo e acomodo os tentáculos do esquecimento.
Em breve, da tua vida restará apenas um diário
deixado sobre a arca de mogno escuro
que num Verão antigo transportaram para o sótão.
Nesse diário vivem rostos, e árvores, e amor,
mas as letras que desenham tais inutilidades
começam a sumir – na sombra do sótão, não existem já.
 
Quando o diário começou a ser escrito, habitavam
no teu coração as criaturas do espírito que te levava
pela mão, do caminho da escola à ladeira que circundava
o muro mais longínquo da casa. Louro bravo
dançava com as sombras da figueira carregada
de Setembro – o figo, escrito no papel,
tocava os lábios como um verso doce
que te adormecia à noite. Na coroa aberta
do figo dançavam a língua e as palavras que a cobriam.
Tempo de certeza. O voo misterioso da andorinha
tinha o seu regresso marcado – todos os anos
o ninho estava à espera. O ritmo das estações,
exato e pleno, adormecia-te quando o temor rondava.
 
Contra o vento eu agora respiro. Mas não resisto.
E ajudo a morte, ajudo, fecho as janelas de casa
sabendo que nunca mais as vou abrir.

Agora o conjunto de folhas é uma ruína fria na luz apagada da manhã.

04/02/23

Memory is a slippery thing

"Memory is a slippery thing; details are hazy, fickle. The more you strain, the less you see. A memory of a memory endlessly corrupting itself. I’ve caught myself recently claiming that feeling is more robust, but it’s tricky. Because in recalling a point in time and how that moment made you feel, it is framed by a new feeling—the feeling of what that moment means to you now. In Turkish, a language rich in vocabulary not easily rendered into English, hasret means some combination of longing, love, and loss. It seems particularly appropriate in this context and to this film." - Charlotte Wells, realizadora de Aftersun. Encontrado aqui.

03/02/23

Aftersun

Aftersun é um ensaio sobre a impressão que as pequenas percepções deixam na memória, e sobre o modo como no presente processamos o vestígio deixado por essas pequenas percepções. É mais instinto do que razão, mais intuição do que sentido. Reduzir o filme aos constrangimentos da infância é um erro: o filme mostra o olhar de uma mulher adulta declinando sobre as suas recordações o véu do entendimento da idade adulta. O olhar de alguém que tenta perceber por que razão lembra como lembra o que lembra. Mas pensar sobre o que lembra altera o que é lembrado - não é que o presente modifique o passado, é mais como se o presente moldasse o passado ao seu corpo, tornasse material o que nunca será mais do que espiritual. É um filme sobre a ilusão de conhecer e sobre a habilidade de construir uma história. O pai da criança é tanto uma sombra como a criança, e a mulher adulta que recorda a criança que passou é tão esboço como o pai e a criança. Na tela são projetadas sombras que revelam gestos, ruídos e pistas que apontam para um destino; mas no presente continuamos a não saber que destino foi esse. Tentar compreender uma memória é um gesto que tem tanto de vão como de fulgor criativo. Por isso funciona, e o filme atrai quem o vê para uma vertigem de sonho, um corpo leve fugindo na noite a caminho do mar.

30/01/23

A sombra de Jeanne Dielman entrando pelo quarto

Vi um filme há semanas e ele anda comigo. As imagens acompanham-me, impressão na retina, negativo de uma fotografia, e são uma mulher. Ela passeia-se de sala para sala, na sua metódica rotina, descasca batatas, prepara o jantar do filho, desaparece para lá do olho da câmara de Chantal Akerman, a mulher que a decidiu filmar para eu a ver neste momento, aqui escrevendo nela, tentando repetir em palavras a desperta sombra das imagens. Jeanne Dielman vive numa rua de Bruxelas e comigo quando a deixo entrar no peso do mundo. Ela, que se libertou a tempo da corda, vive presa nos textos que escrevem sobre as imagens criadas pela cineasta que em tempos decidiu contar a sua história. É justo que Jeanne, mergulhada na penumbra cortada por néons, não perceba a inquietação que toma conta do que escrevo. Passou de um limiar terrível, despediu-se do mundo que a alimentou e vive para lá da luz no écran que a sua vida projeta. Deixemo-la então, ali, cabeça pousada no tempo, antes que o filho chegue da escola. Para sempre não a entenderemos, mas ela sabe que é, e respira.