30/05/07

Madeleine

Entrei no convento de Pedralbes com a certeza do reconhecimento. Nunca tinha lá estado, mas o conjunto de edifícios de estilo mediterrânico, pedra clara e vegetação antiga, parecia-me familiar, de outro tempo. Em Barcelona, terá sido talvez a maior surpresa. Muitos lugares eu já conhecia de outra viagem, alguns anos antes; outros não, eram uma absoluta novidade. Duas visitas não são suficientes para que a cidade se entranhe. Ao ponto do reconhecimento trazer banalidade a cada sítio. A única cidade que se pode vangloriar de ter mudado a minha infância é Lisboa. Entre dois lugares localizados em dois tempos: uma aldeia derrotada pelo tempo que se passou e uma cidade que não conseguiu ainda substituir em pleno a época do deslumbramento inocente dos primeiros anos. Se, neste momento, há outra cidade que possa concorrer com Lisboa, ela será Barcelona - apesar de Londres. Mas não evito a estranheza, claro. A sensação de que caminho num sonho, a pisar terreno virgem. A certeza de que cada novo caminho me ensinará menos sobre os sítios do que sobre mim próprio. Deve ser essa a maior alegria do viajante.
Mas, o convento de Pedralbes. A subida até surgir a torre à esquerda. As casas, do lado direito, o jardim ao fundo, mergulhado no silêncio de musgo que as pedras de séculos respiram. Entrei e fiz a habitual visita turística, os folhetos, o miúdo a correr, alguma história. Pouca gente, era cedo. O claustro, encerrando as freiras numa dupla prisão, era ensombrado pelo som de uma fonte central - a água é sempre o elemento fundamental nos lugares do silêncio. Em Évora há um claustro semelhante - será na Sé? Mas aquilo que, de imediato, me ocorreu foi uma das sequências do último Padrinho, de Copolla. Quando Al Pacino antecipa o fim do seu poder, a sombra dissolvendo a aura de outrora. Espreitei para dentro de algumas celas, imaginei as freiras devotas entregando a Jesus os seus dias; no convento, a entrega é sobretudo física. Joga-se a salvação eterna, mas isso é apenas um pretexto; o que está em causa é o fardo da matéria terrena. Acredito que quem é devorado pela reclusão monástica o faça em desespero de causa - fugindo às dores do agressivo mundo que rodeia os muros do convento. Michael Corleone refugiado não é uma imagem forçada. Há alguma verdade nesta memória.
Mas Pedralbes é mais do que medo e salvação, histórias contadas para assustar crianças. É um fantasma de um filme. Em "Vertigo", de Hitchcock, Scottie persegue Madeleine até uma missão católica, Dolores. Madeleine entra na capela e um som de órgão ouve-se. Julgamos que alguém toca, no filme. Engano, a música está na banda-sonora. Em Pedralbes, entrei na capela atraído pelo som de música. Da rua, quase não se ouvia. Lá dentro, as ondas sonoras, vindas de algum canto invisível, inundavam o espaço. Sentei-me ali, e imaginei Madeleine a desaparecer por uma porta ao canto do altar. Scottie vem depois, a música perseguindo-o. Nasce da tela - a capela mantém-se enclausurada em silêncio. Scottie sai, a música continua. Na capela do convento de Pedralbes, nenhuma porta se via do lado direito do altar, nenhuma porta desembocava no cemitério onde descansa Carlotta Valdes. A música, entretanto, parou. Imagino que não vejo a freira que saiu de uma sala até aí escondida, imagino que a música de Bernard Hermann continua a soar enquanto o olhar triste de Madeleine se detém na pedra fria do túmulo de Carlota, enquanto Scottie espreita, ali perto. No claustro de Pedralbes, um ritual antigo se repete. No silêncio e na sombra, um homem regressa à sua natureza. E reconhece na obsessão o antídoto para o medo.
Saio para a luz do meio-dia, a cidade permanece. No tempo certo.

[Sérgio Lavos]

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