03/05/07

A meio do fim

Será necessário esperar pelo fim de um livro para se poder escrever sobre ele? Imagino eu que já terei lido muitas recensões escritas por críticos que nem se deram ao trabalho de passar das primeiras páginas. Não importa. Não é esse o ponto. O que eu gostaria de saber é em que momento é que uma obra se define; em que altura é que dizemos: aqui está um trabalho de génio, ou uma mediana parição, e não acrescentarei obra medíocre porque essas ou se evitam à partida, guiados que somos pelo instinto da má literatura, ou abandonam-se ao fim de poucas linhas, que a paciência e o tempo não se devem gastar com quem não merece. Não falo da ambiência, do mood da história. Entramos em Kerouac ao som de Charlie Parker e por ali ficamos durante muitos anos; deixamos que Kafka nos invada a casa e nunca mais nos livramos da sombra que o perseguia - desde as primeiras palavras. Não é isso. Que autoridade nos concederá o escritor para avaliarmos do risco da obra? Cumpre o prometido, consegue transmitir ao leitor as premissas básicas do pensamento do autor? De quanto engano precisamos nós, traição mesmo, para entendermos na perfeição o alcance das palavras que lemos? É aqui, precisamente aqui, que traçamos a linha: a partir daqui gosto deste livro. Uma frase, um diálogo, um sorriso a meio de uma obra séria, um atropelo de angústia inesperado na mais límpida metáfora da página. Há uma certa fluidez que se observa, ou entranhar-se-á a obra em nós aos repelões, cordilheira infinita que se repercute no tempo que prolonga a última página? A dez páginas do fim, imagino abandonar um livro ao seu destino, que de resto nunca deixa de ser completamente independente da minha vontade. Até aí, a tal sensação que se diria plena (não fosse este adjectivo tão usado em livros de auto-ajuda); quero chegar ao fim. Fico por ali, antes do autor decidir como acabar a história. Acabará o livro ali, a dez centímetros da vitória? Sem qualquer tipo de alusão sexual, em que ponto atinge a obra o seu êxtase?
A cinco páginas do fim de "Na Praia de Chesil", o último de Ian McEwan, é isto que me ocorre dizer.

[Sérgio Lavos]

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