09/05/07

Lynchland (2)

Como acontece na vida, um filme precisa de pormenores para se definir, e desse modo definir o espectador. Pode ser um frame apenas, uma imagem composta por um conjunto de frames, uma sequência inteira, um diálogo, o que não é visível nem audível, o que sobrevive nas entrelinhas. O que luta para permanecer secreto, apenas intuído, nunca inteiramente revelado. Talvez por isso o cinema de David Lynch continue a ser cativante, apesar de Lynch testar, de filme para filme, os limites da paciência (e do bom-senso) de quem resiste. É um cinema de resistência, portanto, obra-de-arte entricheirada contra os limites da razão, desafiando a lógica mas sempre plena de sentido. É claro que a frase anterior não é um paradoxo. A seta do tempo em Lynch toma caminhos estranhos, a unidade espacial muitas vezes é apenas memória da harmonia clássica. Os limites da interpretação são estendidos até ao infinito; qualquer resposta é válida. No entanto, sabemos que Lynch pensa de maneira diversa da nossa. Por isso recusamos muitas vezes o exercício de indulgência a que ele nos submete, sem sequer nos darmos conta que a indulgência acaba por ser o nosso próprio erro. Remetemos Lynch para a gaveta dos casos clínicos, esquecendo o ensinamento dos grandes criadores do passado: a arte apenas se torna disruptora, de vanguarda, se deixar para trás o lastro, não só do passado, mas principalmente do presente. A vanguarda não é um exercício provocatório; é o reconhecimento de que o passado já não interessa e que apenas através da novidade, da experimentação, se pode criar um novo presente. E este movimento tectónico, de produção de novas margens para a arte, apenas se torna possível se, por um momento, abandonarmos todo o sentido; para que tudo faça novamente sentido - e para que a teoria tenha de novo o seu dia.
Os pormenores. Em "INLAND EMPIRE", Lynch remete o espectador para aqueles que o precederam. No filme dentro do filme, há outro filme que respira: "A Dupla Vida de Verónique", de Krzysztof Kieslowski. Em Cracóvia, Weronika (Irène Jacob) corre pela rua fora com um daqueles que sorrisos que extravasam o real limitado de um filme. Antes de vislumbrar o seu futuro. A mesma mulher que transborda de felicidade (como se costuma dizer) também corre pelas ruas de um cenário de filme em Hollywood que acaba por não o ser (é Lodz, onde o filme de Lynch foi filmado). Será Nikki Grace, Susan Blue ou Verónique? Uma obra que atravessa os seus limites e cruza o passado de forma tão fulgurante desliga-se completamente do real e dele prescinde. Alimenta-se dela própria, existe independentemente do seu criador, do mundo em que foi criada. Não é cinema já, é vida.

[Sérgio Lavos]

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