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07/01/14

Existir

Dando mais um passo na invasão da privacidade dos utilizadores, a Google adicionou uma funcionalidade ao interface mail/blogue/rede social, e agora podemos ver todas imagens postadas no Facebook e no blogue. Esquecendo a questão da privacidade - se eu estivesse verdadeiramente preocupado com isso, não existiria na virtualidade real por onde ando -, a verdade é que o conjunto das imagens associadas ao que vou fazendo mostra parte do que sou, da minha identidade - forjada, claro que está, até porque sabemos que todas as identidades são uma fabricação, o pano que deixa a descoberto outro pano sobre o palco.
Muitos frames de filmes são o sinal evidente que a vida virtual compõe-se sobretudo de ficção. Os filmes que vejo, as actrizes - várias mulheres, quase todas mortas e a preto e branco -, os enquadramentos que me marcaram. É uma história paralela da minha vida - olho para trás e quase que consigo saber quem fui quando me apaixonei pelo "Paciente Inglês" ou quando me comecei a perder nos labirintos mentais de David Lynch. 
É claro que muito do que fui publicando no blogue reporta-se a um tempo anterior às redes sociais. A passagem para a vida adulta, aquele momento em que se estabelecem os pilares de uma personalidade - ponto de partida da identidade que floresce a partir da inevitabilidade melodramaticamente metafísica dos trinta anos - é pontuada pelas inúmeras vias divergentes, os mil e um focos de interesse numa rede que se afigura quase infinita, como se sentindo tudo de todas as maneiras fosse o único modo de viver. Estão lá os livros, os filmes, as bandas, os quadros reproduzidos no espelho ausente do mundo virtual. Sei o que fui quando gostava do que fui publicando, mas já não tenho tanto a certeza de que aquilo que fui tenha sido mesmo. Aquele começo de dúvida subjectiva, entre o espanto e a desconfiança, que transforma a vida num filme projectado contra uma parede de vidro, a transparência e a luz, a evidência e a incerteza concentradas num intervalo de sombra. 
Os dois passados coabitam no mesmo espaço. O código de programação que marca o avanço do tempo pode ser facilmente subvertido. Consigo mudar datas, alterar acontecimentos, mentir. Mas enquanto a falsa identidade que vamos construindo no passo dos dias é dificilmente rebatível pelos outros - o que passou, passou -, a que vamos por aqui deixando deixa uma pegada mais nítida. A única vantagem desta existência de bits é a curta distância entre o ser e o nada, o clique na tecla delete. Vale isto alguma coisa, enquanto quero. A ilusão de controlo é tudo.

13/12/13

Diário de Dezembro (3)


Uma das notícias do dia vem de África, mas não fala de calor nem de deserto, nem de violência. No Cairo, cento e doze anos depois, nevou. Fotografias circulam pela net, aparecem nos jornais on-line. Uma cidade de sol coberta de um branco sujo, retalhada em imagens naturais ou manipuladas por filtros digitais, uma cidade que por momentos parece ter sido deslocada do seu paralelo para outro muito mais a norte. Há alguns dias, outra notícia dava conta de que tempestades de neve tinham atingido o sul dos EUA, e uma vez mais fotografias tiradas na "sunny California", onde a primavera parece ser eterna, mostravam cidades desabituadas do frio tomadas pelo manto silencioso da neve. 
A natureza excepcional deste acontecimento atmosférico parece contradizer o que fomos ouvindo nas últimas décadas. Caminhamos ao contrário do aquecimento global previsto por milhares de cientistas em todo o mundo, e isso apenas pode ser uma coisa boa. Parece que a Natureza dispensa as previsões e os estudos que as suportam, e toma o seu curso habitual lutando contra a mão humana que vem alterando de forma esmagadora o meio ambiente onde calhou vivermos. 
Mas pode ser tudo, claro, um fenómeno transitório, irrepetível. Talvez os modelos de comportamento do planeta estejam mesmo correctos e naveguemos em direcção a um futuro em que a Natureza rejeitará a conquista agressiva que caracteriza a passagem do ser humano pelo mundo. Se assim for, celebremos estes momentos de absoluto milagre, ainda por cima o mais provável dos milagres, o que nasce da possibilidade de uma combinação de elementos que, a determinada altura, resultou.

12/12/13

Diário de Dezembro (2)

O ritmo estabelecido pelo correr dos dias, o ritmo circadiano – a manhã, a tarde, a noite e o adormecer – tem tanto de biológico como de cultural.
Li recentemente uma notícia sobre uma descoberta científica (histórica?), revelando que o horário habitual para o período do sono – as sagradas oito horas diárias que os médicos aconselham e a que os poetas e os loucos procuram escapar – era consequência de uma invenção humana. A progressiva introdução da luz artificial nos hábitos humanos, ocorrida sobretudo a partir do século XVI, permitiu que a vigília se prolongasse muito para além do pôr-do-sol. Esta mudança – como quase todas as que o progresso tecnológico traz – ocorreu primeiro nas camadas mais ricas da população. A nobreza e a burguesia podiam dar-se ao luxo do convívio social noite fora. Os mais pobres, nem por isso: mesmo com luz artificial, a obrigação do trabalho cedo, raiando o sol, continuaria a não permitir o usufruto dos avanços científicos.
E como se regulava o ciclo dos dias, até essa época? As pessoas deitavam-se assim que a noite caía, após a última refeição do dia, e espantosamente (aos nossos olhos) acordavam a meio da noite e conversavam durante uma ou duas horas, comiam, e voltavam a adormecer até ao amanhecer. Estaria assim o ciclo circadiano humano mais próximo do de outros animais; repartíamos o sono (e os sonhos) ao longo das vinte e quatro horas estipuladas. Segundo a pesquisa feita, ainda agora conservamos resquícios dessa prática natural. Quem nunca acordou a meio da noite e sentiu vontade de assaltar o frigorífico?
Vivemos portanto os nossos dias lutando contra a natureza, contra aquilo que nos fez humanos. Mas o que nos fez humanos foi tudo o que conquistámos ao que a Natureza nos impôs. Não precisamos de viver de acordo com os ritmos naturais, inventámos os instrumentos necessários a contorná-los, sobrepô-los, esquecê-los. Precisamos da noite e da luz artificial para prolongar o nosso tempo de lazer. O dia para o trabalho, para a ocupação monótona do corpo; a noite para a leitura, para a conversa, para estarmos uns com os outros – a noite para a libertação completa do espírito.
Distanciarmo-nos tanto do que em nós é animal, instintivo, poderá ter um preço. É à noite que o medo espreita. Se quando vivíamos nas cavernas esse medo era palpável e usava o rosto dos animais que nos caçavam, agora tornou-se difuso, e em vez de ser uma presença, é esquivo, misterioso: uma ausência. Na noite, entregamos o espírito ao que não pode ser descoberto. Não temos feras que nos matam, ameaças claras, e no seu lugar há como que um círculo invisível ao redor do qual traçamos infinitas investidas, voos de reconhecimento, que nunca chegam a determinar de forma exacta as coordenadas espaciais que procuramos. Rondar a verdade antes de adormecermos é um inútil exercício, votado à derrota. E contudo a ele voltamos diariamente, ou então esforçamo-nos por não voltar, tentando enganar o que não poderá ser enganado. Quando vivíamos no meio de feras, o mundo era mais certo.

03/12/13

Diário de Dezembro (1)

O frio não é tanto que não se consiga suportar. Queixar-me dele e pensar no Norte, nos países dos prolongados invernos e das noites que não chegam a ceder ao dia, é um sintoma de fraqueza. Viver acima dos trópicos – os de Michaux e os de Claude Lévi-Strauss, onde a doença acampa à porta de cada coisa e vive na vizinhança de uma beleza transcendente – e abaixo do círculo imaginário da neve – tem tanto de conforto como de delicada monotonia. Até que ponto a ausência de filósofos e o excesso de poetas não será consequência de um incidente geográfico? Vivemos a sul, mas não o suficiente para que tivéssemos inventado o samba – simplesmente fomos tão longe levar a melancolia que criou a bossanova e a morna. Não somos capazes da alegria, mas não somos tristes a ponto dos nossos criadores, ao longo dos séculos, se terem fechado dentro de casa a estabelecer modelos filosóficos. Fernando Pessoa, encerrado no seu quarto de funcionário, abria uma janela e deixava a luz entrar, apagando os vestígios de angústia e eliminado qualquer possibilidade de impor uma ordem aos seus infinitos papéis, às suas múltiplas identidades. O estilo fragmentado do “Livro do Desassossego” é a prova de que a filosofia falha, decompõe-se, e esboroa-se, quando manuseada pelo gesto intermitente e incerto de um qualquer pensador português. O trabalho do filósofo, rigoroso, aborrecido, dividindo cada ideia na ideia de si mesma até ao ínfimo pormenor, precisa de um tempo e de um espaço concentrados de tal modo que desapareçam, e no seu lugar apenas as palavras dando corpo às ideias e aos esquemas da mente sobrevivem. O poeta, mesmo quando metafísico, como Bernardo Soares, perde-se e afasta-se da ideia inicial, diverge, viaja dentro de si próprio sem mapa nem bússola. Escrever é sempre um acto de partida – de um lugar preso de incerteza para o outro ainda mais incerto – e tem uma potência em si que o filósofo quase sempre despreza - o seu material de trabalho são ideias, as palavras apenas um meio de as transmitir, uma ferramenta. Para o poeta as palavras são ferramenta mas são também “metal fundido”, pronto a ser moldado, transformado noutra coisa distante da sua função original – a língua na qual elas existem.

17/09/13

Immanuel Kant, o incendiário

Despertou-me inicialmente a atenção quando vi a notícia no Sol. Como me pareceu que haveria um problema de redacção e/ou tradução, pesquisei no Google e fui ter à notícia do Independent. Alguém que não estivesse atento poderia pensar que esta é uma daquelas notícias inventadas, da Imprensa Falsa ou do Inimigo Público. Mas é verdade, o que só prova o cliché de que a realidade demasiadas vezes ultrapassa a ficção.
Um homem é baleado no seguimento de uma discussão filosófica. Sobre Kant. Baleado várias vezes pelo seu opositor. Quão extraordinário é isto? Kant, o homem que fazia da temperança e da sensatez as suas virtudes cardeais, a gerar tanta paixão. Não tendo sido divulgada a ideia kantiana sobre a qual os dois homens russos discutiram, é contudo revelado um pormenor que me parece interessante: a discussão começou enquanto esperavam por uma cerveja. Sabemos como o álcool altera o estado de espírito, espoleta discussões e gera violência. Mas isto é, digamos, excessivo. Encetar uma discussão filosófica com um estranho que redunda em confronto físico e em tiros disparados à queima-roupa entra no domínio do surreal. Não há númeno que descreva esta sucessão de improbabilidades estatísticas. Mesmo acreditando que na Rússia é vulgar a discussão em público de temas filosóficos - tal como é dito na notícia do Sol. Se assim for, o país de Tolstoi e Putin é o legítimo herdeiro da Grécia Antiga, mas com uma reviravolta: saímos da academia, das escolas fundadas por filósofos, e saltamos para tascos mal frequentados. Da Ágora para a taberna - três mil anos de tradição filosófica no Ocidente.
Seja como for, e prestada a devida homenagem à nação que recuperou o fervor da discussão filosófica pública, resta uma questão: que conceito estaria em discussão? A diferença entre belo e sublime? As ideias apriorísticas? Dúvidas, dúvidas. Certamente que não seria a ideia de paz perpétua. Talvez o imperativo categórico. Quem sabe se, levado por uma fervorosa defesa deste imperativo, o homem que descarregou um revólver (com balas de borracha) no seu adversário não seria o último reduto desse imperativo? As contingências da vida material - os limites da moral, a prisão - não se sobrepuseram à obrigação moral, ao dever, que terá sentido em defender o seu ponto de vista. Sem termos a certeza sobre qual a ideia discutida, podemos facilmente acreditar que, naquele momento, a obrigação moral sobrepôs-se ao resto. Contra este facto, nada poderemos fazer. Uma coisa é certa: como alguém comentou no Facebook: "todas as discussões filosóficas deveriam acabar assim". Tanto fervor e dedicação certamente contribuiriam para o renascimento da filosofia. Bem precisamos.  

Notas para uma crise (7)

O rapaz que agora toma conta do país afirmou em tempos - numa entrevista dada quando ainda era apenas um simples candidato a líder do maior partido da oposição - que cedo se dedicara ao ensaio, tendo lido Jean-Paul Sartre na adolescência, nomeadamente um livro intitulado "Fenomenologia do ser". Claro que vários ilustres membros da nossa intelligentsia lhe caíram em cima, fosse por despeito fosse porque simplesmente... esse livro não existe. Não existe no sentido material e concreto da coisa - Sartre nunca tinha escrito obra, ou ensaio ou nota de diário que levasse esse nome. Os jornalistas que depois pegaram na peça tentaram compôr a coisa à jovem esperança da política portuguesa, sugerindo que ele se poderia estar a referir a O Ser e o Nada e ao subtítulo deste: "ensaios de ontologia fenomenológica". Todavia, o episódio não se livrou de ficar ao mesmo nível dos concertos para violino de Chopin apreciados por um antigo presidente de um clube de futebol. Mas a verdade é que esse é o menor dos seus pecados - a ignorância pusilânime de um imbecil; tudo o que tem feito desde que se tornou primeiro-ministro é uma nódoa que nem o mais bem intencionado biógrafo conseguirá apagar. 
Os políticos medíocres e os escritores com aspirações ao respeito do meio caem muito nestas armadilhas montadas pelos jornalistas - esses sacanas sem lei. Há uma rapariga, Margarida Rebelo Pinto, que é especialmente dotada a citar autores e livros e frases. A mim, sinceramente, desconserta-me, porque nem tem de todo mau gosto. Ou então é esperta o suficiente para saber quais os nomes de que deve falar, quais os grandes escritores que fica bem dizer numa entrevista. Certo que Rebelo Pinto sofre a bom sofrer. A cada entrevista que dá, sentimos um rancor por escrever a tal literatura light. Colada com cuspo na testa, a marca nunca mais sairá. Não é que não seja justo - se a literatura light é o lúmpen da literatura, que outro selo de qualidade lhe deveria estar apenso? Duas coisas são certas: mesmo que um dia Rebelo Pinto escreva os "Cem Anos de Solidão" do seu contentamento, não será promovida a esse tal meio que a execra; e nunca Rebelo Pinto conseguirá escrever os "Cem Anos de Solidão" do seu contentamento. 
De cada vez que, por uma razão ou outra, leio essa história do político, lembro-me do Jean-Sol Partre, o filósofo que Boris Vian criou para A Espuma dos Dias. Vivíamos tempos de risco e de polémica. Vian não se importou de parodiar aquele que seria, já à altura, um dos mais importantes intelectuais e escritores franceses. Talvez não fosse ainda a instituição que depois se tornaria, mas seria digno do respeito de um recém-chegado como Boris Vian, sobretudo porque acabaria por publicar excertos do livro de Vian na revista que dirigia com Simone de Beauvoir, Temps Modernes.
Eram outros tempos. Estes, infelizmente, são de chumbo. Quando a apatia toma conta de tudo, até os intelectuais desaparecem. Tirando um ou outro fogacho de figuras isoladas, nada se passa. No outro dia, corria pelo Facebook um texto de Natália Correia, escrito em 1992, sobre o futuro do país. Quase tudo o que está escrito naquele texto se concretizou. E em profunda abulia vamos sofrendo este apagamento da cidadania. No mesmo dia em que li esse texto, um ministro da educação vinha para a televisão mentir sem qualquer pudor. Com a educação pública a ser destruída, por onde andam os intelectuais - escritores, músicos, artistas - que dela beneficiaram? Não escrevem manifestos, não promovem abaixo-assinados? Não reclamam, não dizem nada, calam-se? Temos políticos a governar contra os interesses do povo, e quase ninguém se levanta. Os intelectuais, silenciosos - com uma ou outra honrosa excepção. Enquanto alguém como o rapaz que em tempos leu um livro que nunca existiu - escrito por Sartre - vai brincando com o que não domina, desistimos. 

04/09/13

Notas para uma crise (6)

Esta notícia de um edifício construído em Londres que, devido à sua forma côncava, reflecte o sol, provocando danos em outros edifícios e carros próximos, leva-me a acreditar que há vários graus de falhanço a que todos podemos estar sujeitos. Há os grandes, gigantescos falhanços, tão grandes que são perdoados e compreendidos por todos - nesta categoria incluiremos sem dúvida os falhanços dos políticos e dos economistas. Acrescente-se que, de qualquer modo, este fracasso não é entendido como tal por quem nele se enreda. A qualidade de um político mede-se quase sempre em função do limite a que pode ser levado o seu estado de negação. Acredito que um político que fracasse tanto e tão completamente que se torne humilhante aos olhos de qualquer ser humano que saiba o que é vergonha alheia tenha poderes especiais; isto é, criou uma carapaça tão forte que nenhuma crítica lhe belisca o ego. Não falha não porque não falhe - mais do que os outros - mas porque nunca chega a assimilar a magnitude do seu falhanço. É como a mentira. Um político não mente porque na realidade a partir de certo ponto sente a verdade como mentira e a mentira como verdade. Se for demasiado sincero sabe que, quando chegar a altura, falhará na sua promessa, por isso mente de antemão e mente durante e mente depois de ter contradito a promessa. Ora, alguém que nunca mente - porque, do mesmo modo que um psicopata não sente empatia, é falho na compreensão da mentira que ensaia - também nunca falha. As biografias dos políticos são monumentos à elipse e ao esquecimento. Tudo o que é grandioso cabe lá, e os falhanços só lá entram na medida em que consigam mostrar um lado mais humano do político. Muitas vezes, nem falhanços são; são circunstâncias enquadradas por momentos, condicionados por conjecturas e especulações provisórias. Acidentes de percurso que nunca poderiam ter acontecido de outra maneira, e aos quais a vontade do político é imune.
Mas adiante. O arquitecto que projectou o edifício certamente que não pensaria, enquanto desenhava no seu atelier, que tal poderia acontecer. Londres até é uma cidade com pouco sol, e por aí fora. Há quem diga que para cada projecto de arquitecto é preciso um engenheiro para manter a estrutura em pé. Quem costuma afirmar tal são, como seria de esperar, engenheiros. Que quase sempre são tão falhos de imaginação e criatividade que apenas poderiam ter-se tornado engenheiros. Mas seja como for, neste caso o falhanço é tão grande como o daquela ponte que há uns anos foi construída numa cidade americana e que, à primeira tempestade que a atingiu, foi arrancada das fundações pelo vento. 
O que sentirá o arquitecto? Certamente culpa. Sobretudo vergonha. A vergonha que raramente assola o político. Vergonha por ver o seu falhanço exposto à inclemência do mundo. Nenhum ego poderá resistir a tal erro. Os mais fracos dirão: apenas falha quem chega a tentar. Não deixa de ser verdade, mas para tal falhanço não foi preciso risco; apenas uma enorme insensatez. Seja quem for, não vou ter pena de quem falhou por tanto. Deve ser uma arte respeitável, saber expôr-se a exigências humanas, à cruel mão do destino. Preferiria mil vezes que existissem mais falhanços deste e menos dos políticos. Por cada edifício mal estruturado, há um crime involuntário a ser cometido por causa do falhanço de um político. Não perdoar os primeiros e aceitar os segundos torna isto tudo muito mais difícil.

23/08/13

Jüdishes Museum - Daniel Libeskind

O simbolismo das pedras decorre da organização do espaço, da distribuição do vazio e da matéria, ou nasce da abstração da memória e dos fundamentos culturais do indivíduo?
Quando um edifício é construído com um propósito inicial determinado, qualquer decisão do arquitecto é conduzida por esse propósito. Diferente de transportar objectos para um edifício pré-existente. O espólio do museu do Judaísmo é a carne que as pedras cobrem, o miolo a partir do qual se constrói o museu. As vidas deixam de ser vidas e passam a ser memorabilia que pertenceu em tempos a pessoas desaparecidas, mortas. O eixo do Holocausto, um corredor ascensional que corta o eixo da tranquilidade, desemboca - ou antes, é bruscamente interrompido - no vazio, uma sala que acompanha verticalmente toda a exposição, sem nada dentro, na qual apenas é visível uma fresta no alto por onde entra a luz - apenas durante o dia, dado que nenhuma fonte de luz artificial existe na sala. A verticalidade da divisão enclausura as vidas dos judeus que antes vimos. O frio da pedra cria um vácuo concentrando o tempo num espaço de três metros quadrados, um altar sacrificial de onde toda a presença divina foi sugada. Um funcionário do museu abre a porta ao visitante - um porteiro para o vazio. O longo corredor que exibe em pequenas capelas restos da vida de judeus mortos em campos de concentração é apenas a antecâmara do extermínio. Andarmos por ali ritualiza a morte, objecto de celebração da entropia. Será possível uma qualquer ética ainda humana num museu que celebra o desaparecimento?

(De um diário de uma viagem de há alguns anos.)

17/07/13

Um verão

Concordando com os que dizem que não há leituras de verão, isto é, que as leituras de praia não se diferenciam das leituras que o frio traz, a verdade é que ao longo da minha vida noto padrões que se acomodam melhor ao calor ou à linha do horizonte entre mar e céu do que ao sofá e ao barulho da chuva lá fora.
De há uns tempos para cá, por circunstâncias pessoais concretas, tenho retomado os livros de Vergílio Ferreira, relendo uns e lendo pela primeira vez outros. Tornaram-se assim as suas frases uma companhia que combina com o calor, como se a vertigem existencial que encontramos nelas apenas pudesse ser atenuada pela limpidez da luz e pela certeza de que a noite chegará mais tarde. Claro que pensar isto não passa de um artifício que procura explicações para o acaso. Mas não esvaziemos de importância o jogo do azar e da sorte nas decisões que tomamos.
Levado por estes livros, fui empurrado para o Mito de Sísifo, que começara a ler e nunca terminara, depois de ter lido os romances de Camus de forma intermitente. Tão longe estou do verão em que peguei num tijolo de quase mil páginas, um policial passado em ambiente académico, numa cidade de Boston que apenas conheço da ficção. A autora é Donna Tart, e o livro chama-se A História Secreta, e julgo já ter escrito sobre ele em tempos.
Mas não me interessa agora o livro em si. Em vez disso, recordo os dias passados em Porto Covo e as horas de sol na praia, o meu filho à sombra de uma falésia, dormindo sestas prolongadas enquanto eu mergulhava nos abismos negros e invernosos de um grupo de amigos, estudantes de grego e de cultura clássica iniciando-se nos mistérios do amor e da morte. A distância entre aquele sol e aquele mar, e os bosques, os corredores escuros e a pedra antiga do romance era percorrida de um ápice, a cada virar de página. Dormindo a meu lado, o meu filho, tão perdido quanto eu - o conforto da certeza era o embalo perfeito para os nossos sonhos.
A praia de há oito anos agora foi cortada a meio. É uma meia-praia, o areal aos poucos foi sendo engolido pelas águas, e a falésia que nos abrigou agora tem um sinal avisando os veraneantes do perigo de derrocada. Logo a seguir à linha da maré, o mar cavou um fosso que torna os banhos perigosos. Não é mesma praia, apesar de ser o mesmo bar e a mesma linha do horizonte, o mesmo sol. São outros, os livros. E os sonhos.

20/06/13

Notas para uma crise (5)

"O país trabalha em ordem, vós os dizeis e os políticos vossos servos muares. O país trabalha em paz, vós mo dizeis desde a cabeça do poder até à última prostituta e limpa-retretes. Também as formigas trabalham porque a natureza as fez estúpidas para isso. Também a besta anda à nora e com os olhos vendados para não ver que anda e ter acaso uma hipótese negativa na sua capacidade de besta. Também o burro puxa à carroça e leva pancada se faz greve de zelo, porque não calcula que é ele o sujeito desse puxar. Assim não é possível chegar a uma formiga e dizer-lhe pára um pouco e pergunta-te que diabo ando eu aqui a fazer?"

Vergilio Ferreira entra em território desconhecido quando os seus narradores - ou alguma personagem - começam a falar de política, explicita ou alegoricamente. É uma marca que se repete em vários dos seus romances - e se em Portugal existissem editores à maneira anglo-saxónica, essas longas diatribes, entre o moralismo e a indignação bacoca, seriam cortadas sem apelo nem agravo. Isto sou eu quem diz. Eu, que em Saramago também não gosto dos narradores intrusivos e que têm opinião sobre questões de política, os narradores sentenciosos e demasiado próximos da própria personagem saramaguiana. Sei que pensando isto nego parte da arte da ficção tal como Saramago a entendia; várias vezes ele afirmou que o narrador se confundia com o autor, ou pior, que o narrador (nas suas narrativas na terceira pessoa) nunca deixa de ser o autor. Mas o que mais me fascina em Saramago é o domínio do tempo e do ritmo das histórias contadas e a destreza linguística. E os defeitos que lhe encontro não esvaziam este fascínio.
Mas voltando a Vergílio. Será este talvez o terceiro verão em que regresso a ele. Agora, Em Nome da Terra, do qual retirei a passagem acima. A política entra na minha vida sem pedir licença, e mesmo quando  me afasto ela me persegue, nem que seja através da voz da personagem de um romance. Tudo é política, ainda hoje eu dizia - os aspectos mais banais do nosso quotidiano dependem de decisões tomadas por outros, decisões que não conseguimos controlar. Não sei se somos formigas ou bestas, "com os olhos vendados para não ver", mas sei que facilmente caímos nessa dócil escravatura que nos obriga a percorrer o carreiro das formigas de Zeca Afonso. Vivemos um tempo em que se é cada vez mais difícil seguir em sentido contrário. Quando a herança de Zeca (e de Saramago, e até de Vergílio Ferreira) é assim traída, o que nos resta? 

Notas para uma crise (4)

Comecei este blogue em Março de 2006. Antes, tive outro blogue (o Arquivo Fantasma) que se iniciara em Janeiro de 2005. Desde o início, escrevi para não deixar na gaveta, para tornar público o que durante muitos anos era privado. O exercício da escrita - poemas, ficção, prosa não ficcional - é coisa antiga, começou mais ou menos na mesma altura em que percebi que a leitura poderia ser um prazer permanente na minha vida. Não sabia aos dez anos que uma década depois a escrita faria já parte da minha identidade, do meu "eu", não freudiano, mas expressão da minha consciência no mundo. 
(Digo não freudiano porque desde sempre considero que a escrita esconde mais do que revela, é mais impressão de uma realidade - mesmo que seja interior - do que expressão de uma verdade.)
Durante oito anos, não cheguei a perceber para que serve um blogue, para além dessa vontade de oferecer algo que se calhar não tem qualquer interesse. A minha perspectiva mudou quando fui convidado para escrever no Arrastão. Fiquei lisonjeado pelo convite porque significava um reconhecimento. Aceitei pensando continuar a escrever sobre o que escrevo aqui, ampliando os meus interesses para a política (tema que raramente me estimulou no Auto-retrato). No fundo, a decisão tomada não teve qualquer ponderação grave. Um blogue é um blogue é um blogue, a importância disto tudo é nula. 
Mas a verdade é que escrever para o Arrastão me foi afastando do Auto-retrato. Pior: escrever no Arrastão implicou sempre um esforço de apreensão de um mundo que eu considero, desde cedo, uma poça fétida onde os medíocres gostam de chafurdar - a política. Não que não tivesse prestado atenção à política desde sempre, e que não ache que não seja essencial manter essa atenção para compreender porque estou aqui, agora, e para onde posso ir, e como. Mas o exercício de escrever com regularidade sobre politiquice e questões que, para todos os efeitos, me transcendem (e à esmagadora maioria das pessoas), fugindo do meu controlo, tornou-se uma pedra de moer e ao mesmo tempo um vício - o prazer imediato do comentário sobre a actualidade, as polémicas, a verrina, conseguem realmente viciar. Mas afastam-me do resto, do coração da escrita, daquilo que eu era antes de começar a escrever sobre política.
Tudo isto cansa. A vida cansa. As possibilidades que se estreitam e os caminhos que deixam de se bifurcar começam a pesar nas decisões. O tempo é uma seta apontada ao futuro - e mesmo que não saiba qual é esse futuro, sei que não posso ir por aí, pelos desvios que reclamam a atenção e a afastam do que realmente conta. Como há coisas, muitas, que não consigo controlar, só me resta concentrar no que consigo. 
O meu objectivo: regressar ao Auto-retrato e começar a ter a mesma regularidade que vou tendo ainda no Arrastão, abandonando temas políticos. Deixar respirar a escrita, libertar-me do que não consigo mudar. Pode ser que daqui a algum tempo volte tudo à casa desta partida. Veremos. Não sou dogmático.

14/06/13

Notas para uma crise (3)

Como não acautelei a compra do livro de Herberto Helder, fiquei sem ele. Parece que a edição de 5000 exemplares foi comprada por especuladores e leitores de circunstância - mas isso não é o mais importante.
Dos poemas que tenho lido, nota-se essa transição de uma poética da transcendência para um regresso a uma imanência que se faz contra um mundo que mudou bastante nos últimos anos. Não será o "regresso ao real" de que falava Joaquim Manuel Magalhães - apesar de essa premissa se ler nas entrelinhas do depoimento de Manuel de Freitas e do texto António Guerreiro no Ipsilon de hoje - mas uma aproximação a um "tempo final" que não só se manifesta pelas circunstâncias da biografia do poeta, mas também através da fala de uma época consumida por ecos de um fim.
Esse fim não é o "fim da História" profetizado há mais de duas décadas, mas será antes o fim do Ocidente, tal como o conhecemos. Vivemos "tempos interessantes" desde pelo menos a crise de 2008 - e que se pressentiam depois do 11 de Setembro -, quando a finalidade última da política e dos políticos deixou de ser o "serviço do povo" para passar a ser uma qualquer vassalagem a poderes mais ou menos invisíveis ou a uma ideia que se afirma além da política (mas não é, porque tudo é política) e se alimenta de números, previsões e modelos económicos
É claro que a urgência passa ao lado da maior parte dos países da Europa. Esta restrição abrupta de parte da nossa vontade não se fará sentir nos países "não-intervencionadas". A destruição sistemática de um modo de vida fundado na solidariedade entre povos e entre classes - que nunca chegaram a ser verdadeiramente desmanteladas - é como uma onda selectiva que apenas varre os povos do Sul - que sejam a Grécia, berço da civilização ocidental, e Portugal, porto de partida da globalização mundial, é significativo. Lá fora, fora de nós e do sufoco que nos oprime, o mundo continua a rodar, sem percalços e forças de maior. 
A forma como está a ser construída a União Europeia trouxe-nos a um ponto em que a legitimação democrática é comprometida a cada momento. O voto, expressão última da vontade do povo, deixou de criar a ilusão de controlo de que as democracias representativas se servem para resguardar a sua existência. A descrença na política e nos políticos, sintoma maior da doença da democracia que fere a União Europeia, não tem sido convenientemente tratada por quem detém o poder. E este desdém pelo "sentimento do povo" não é inócuo ou sinal de uma displicência; numa União Europeia em que a maior parte dos cargos de decisão são ocupados por pessoas não-eleitas, é apenas natural que não exista uma verdadeira preocupação com este fosso cada vez mais aprofundado entre as decisões políticas e as pessoas que são afectadas por elas. É perfeitamente indiferente a um burocrata de Bruxelas que uma decisão sua envolva milhões de pessoas. E neste ponto o burocrata não está assim tão distante dos "burocratas" do Holocausto, retratados por Hannah Arendt na sua reportagem ao julgamento de Eichmann em Jerusálem. O burocrata do Holocausto limitava-se a cumprir ordens e a fazer o que lhe pedia. Um burocrata de Bruxelas segue a cartilha económica dominante e cumpre o decidido à partida. O burocrata da troika tem "um programa" para implementar e aterra em Lisboa para averiguar se esse programa é seguido à risca. O burocrata do Governo olha para os números e comove-se com a beleza intrínseca do "ajustamento", da mesma forma que o burocrata do Holocausto se comoveria com a beleza de uma tarefa bem cumprida. Não existe compromisso com as consequências da beleza, mas sim uma espécie de frieza sociopata possibilitada pela distância entre eleitos e eleitores - e por isso o burocrata do Governo se orgulha de "não ter sido eleito coisíssima nenhuma". 
O mal estar de um tempo. O fim da democracia tal como a conhecemos. O progressivo abandono das pessoas e das suas vidas por parte de quem decide o destino delas. E essa espécie de sufoco diário de quem vive sujeito a poderes que não controla e a decisões que podem mudar o curso de uma existência. A ilusão de que o voto poderia mudar este curso definido, ou a ilusão de que o progresso não teria fim, terminou.  Que exista um poeta que, no fulgor dos seus oitenta anos, tenha decido tratar - no sentido de cuidar, também - estes problemas, criando uma identificação entre o sujeito poético e o sujeito civil, abandonando o manto do demiurgo (como Manuel de Freitas o qualifica) e assumindo a precariedade de um corpo e de um fim, simultaneamente afirmando a potência de quem sente e vive no mundo, e com ele pensa  e combate, é o milagre possível. Nada vai mudar, certo. Mas sim, fica a poesia.

15/05/13

O labirinto

"Ouvi Borges dizer que se recordava que uma tarde o pai lhe tinha dito algo muito triste sobre a memória, tinha-lhe dito: «Pensei que conseguiria recordar a minha infância quando cheguei a primeira vez a Buenos Aires, mas agora sei que não consigo, porque creio que se recordo algo, por exemplo, se hoje recordo algo desta manhã, obtenho uma imagem do que vi esta manhã. Mas se esta noite recordo algo desta manhã, o que então recordo não é primeira imagem, mas sim a primeira imagem da memória. Assim, cada vez que recordo algo, não o estou a recordar realmente, mas estou sim a recordar a última vez que o recordei, estou a recordar uma última recordação. Por isso, na realidade não tenho em absoluto recordações nem imagens sobre a minha infância, sobre a minha juventude.»
Depois de evocar estas palavras do pai, Borges calou-se durante uns segundos que me pareceram eternos, e logo a seguir acrescentou: «Tento não pensar em coisas passadas porque, se o faço, sei que o estou a fazer sobre recordações, não sobre as primeiras imagens. E isso põe-me triste. Entristece-me pensar que talvez não tenhamos verdadeiras recordações da nossa juventude.»

Esta passagem de Paris Nunca se Acaba, de Vila-Matas, já tinha ficado a bailar no meu espírito da primeira vez que li o livro, há uns anos. A analogia da memória como uma cebola à qual se vão retirando as várias camadas, até restar nada, fabulosa na sua simplicidade, é também terrivelmente verdadeira. As nossas recordações são codificadas em imagens, e não podemos confiar nelas. Podemos lembrar sons, palavras, até cheiros ou sabores, mas estas sensações não-visuais são sempre inseridas numa cena. O passado projecta-se no nosso presente, imagens numa tela, mas nunca poderemos seriamente confiar nas imagens que vemos - o filme da nossa vida pode ser tão inventado como qualquer fita a que assistimos. 
Pensar que o passado, por mais forte que seja a impressão que deixa no nosso presente, pode não ter existido, poderia levar-nos, se quiséssemos, à loucura. Confiamos nas imagens que não são mais do que recordações de uma recordação. Não sabemos, nunca saberemos, o que perdemos e o que ganhámos, o que acrescentámos ao que vivemos. Claro que a técnica - fotografia, filmes - permite-nos fixar a realidade, fintando os truques da memória. Mas até essas imagens mentem, ou pelo menos escondem a parte do passado que existe para lá do enquadramento.
Por outro lado, não só não podemos confiar nas recordações como nunca poderemos saber o que sentimos no momento em que recordamos. Achamos que sabemos o que sentimos, mas poderemos na realidade saber o que pensávamos de um acontecimento ocorrido aos doze anos, estando a ver aqui do presente, o olhar moldado por aquilo que somos agora? Há algumas formas de loucura que aprisionam o ser no passado - talvez esses loucos consigam saber exactamente o que sentiam, o que pensavam, num qualquer momento traumatizante da sua vida que para sempre será repetido, em loop perpétuo. O castigo por recordarem de verdade é a perda do presente - viver exactamente no passado, como aconteceu, não permite que vivamos para o que somos, agora, e para o que viremos a ser. A história da mulher de Lot, contada no Génesis, que olha para trás, para Sodoma destruída, desobedecendo a Deus, e se transforma numa estátua de sal, revela a essência dessa maldição de forma perfeita.
E depois, há os sonhos. Muitas recordações que eu tenho, sonhei-as. Isto é: eram recordações de coisas reais com que sonhei, e a partir da primeira vez que as sonhei, passei a lembrar apenas o sonho. Portanto, não é apenas pensar em coisas passadas que são imagens das recordações, mas pensar em sonhos que são imagens das recordações achando que esses sonhos são as verdadeiras recordações. 
O labirinto mental de Kubrick (em Shining) é provavelmente a imagem mais clara do mundo de incertezas e enganos em que estamos enredados. Talvez por isso, a psicanálise aponte para a ideia de que um homem são seja alguém que vive o mais afastado possível do seu passado. Quem vive no presente, consegue fugir às imagens que distraem e enganam, à ilusão.

06/05/13

Notas para uma crise (2)

Não conseguir libertar-me do mundo em que vivo pode ser ainda mais opressivo do que a prisão que a simples enunciação desta impossibilidade sugestiona. O mundo em que vivo é um mundo cada vez mais cruel, injusto, um mundo em que os acabrunhamentos implícitos da existência se vão multiplicando, numa impotência que há bem pouco tempo não se julgaria possível. 
As notícias de jornal, as reportagens da televisão, as conversas de café. Três planos diferentes, cada um apontando para o mesmo: não se vislumbra saída para o impasse, todas as possibilidades parecem vedadas. Será assim para muita gente, cada vez mais pessoas, não será para alguns que navegam a fortuna, escapando à vaga que tudo parece arrastar. Nunca vi tanta tristeza nos olhos das pessoas. E o medo, disfarçado pela sombra da resignação. A vontade de poder, que para a esmagadora maioria nunca passou apenas de uma vontade de lutar por uma vida melhor, é constrangida a cada dia que passa por uma hierarquia sufocante, incontrolável. As pessoas sentem, as pessoas sabem, que pouco do que se possa fazer irá mudar verdadeiramente alguma coisa.
Há mudanças, pequenos assomos de mudança. Há talvez maior proximidade. O que nos une, a nós, proletários de um país que nunca deixou verdadeiramente de os ter, é a perda e a impotência. Sentimentos negativos, é certo, mas que estão criando laços invisíveis que poderão, quem sabe, ser o rastilho para uma verdadeira transformação. Os primeiros sinais, contudo, são de um medo mais profundo e perigoso. É no medo que prosperam o ódio e a negação, e não é, de modo algum, um acaso, que os movimentos políticos extremistas ressurjam, alimentando-se do ressentimento e da desesperança. Entre esta discreta união de despojados de uma política que escolheu vomitar a parte da sociedade que verdadeiramente nunca pertenceu, de pleno direito, ao paraíso da modernidade, e os movimentos extremistas para os quais é atraída outra parte destes despojados, se decidirá o futuro. As vozes que repetem que outra guerra poderá surgir a breve trecho poderão estar mais certas do que o bom senso aconselharia.
No dia a dia, nada disto conta. Os grandes planos são contrariados pelos pequenos incómodos. Basta afastarmos o espírito por algumas horas daquilo que produz a ilusão de guiar a nossa vida para percebermos que, afinal, a filosofia dos antigos e os manuais de auto-ajuda têm razão numa proposição: cada momento conta, esqueçamos o que nos leva a acreditar numa perspectiva demasiado grandiloquente das nossas minúsculas vidas. Olhar para as coisas, como elas são, senti-las. Sentarmo-nos a ouvir a natureza, e perceber que o barulho a que não costumamos prestar atenção, com um ligeiro esforço, pode-se focar, evidenciando todos os sons que o compõem: cinco cantos diferentes de pássaros, do trinado composto do pintassilgo ao monótono piar da carriça; o ritmo certo do longínquo cuco; a brisa suave soprando por entre as laranjeiras; as vozes familiares que dão sentido à distância que nos separa do mundo. E, se concentrarmos toda a nossa vontade no gesto, ouviremos o ruído de fundo do universo, pulsando desde o início dos tempos. A crise? Não existe.

22/04/13

Notas para uma crise (1)

Não posso dizer que nunca tenha pensado em estar desempregado. Mil e trezentos milhões num país de dez milhões é muito, demasiado. Podia calhar a mim, como calhou. Dez dias e uma visita ao Instituto de Emprego e Formação Profissional depois, tenho tudo para poder embarcar no maravilhoso mundo do empreendedorismo. Ou então emigrar, como a maioria das pessoas com vontade e capacidade está a fazer. O país desperdiça os seus mais valiosos recursos, blá blá blá, e aqui estamos. Claro que o país não desperdiça nada; quem nos desperdiça é quem nos governa, e desperdiça-nos porque na realidade não nos governa, mas isso é outra história. Quando tudo acabar, estaremos todos muito mais felizes - menos os que morreram pelo caminho.
Na sexta-feira, a tal visita. Esperava mais gente, confesso. Meia dúzia de pessoas, mais um grupo alargado de desempregados que foram chamados para um acção de formação. A chamada parecia a de uma parada militar ou de uma revista na prisão. Uma senha pedida a um segurança de uma empresa privada que me pareceu claramente estar ocupado em funções - distribuir senhas - que não deveriam ser suas. Os serviços públicos estão com falta de pessoal - Portugal é mesmo o país da UE que mais funcionários públicos despediu, desde 2011, à frente da Grécia e da Irlanda. Não interessa. O Governo quer despedir mais 50, 100 mil, o céu é o limite. Que se lixe. 
Esperei pouco tempo e lá me chamaram. O funcionário foi fazendo as perguntas do questionário - sim, estive empregado na empresa doze anos; sim, rescindi contrato porque tinha quatro meses de salário em atraso; sim, estou disposto a abdicar de parte do que vou receber de subsídio se tiver uma proposta de trabalho minimamente aceitável. E sim, prometo apresentar-me quinzenalmente na junta de freguesia, como se fosse um arguido com pulseira electrónica. Desempregado está suficientemente próximo da situação de arguido, somos todos suspeitos aos olhos do poder político. Os desempregados de longa duração, sem subsídio e com RSI, terão de fazer trabalho escravo para justificarem os 80 euros que recebem do Estado. É justo. 
Um mundo de oportunidades espera-me, se calhar não estou a ver as coisas bem. Voltei para casa a pé - vou aproveitar o desemprego para finalmente fazer o exercício físico que ando a adiar há tantos anos. O que vem por bem compensará o que perdi. Não posso bater punho porque não sou um perfeito idiota; ou provavelmente sou e ainda não me dei conta disso. Os cretinos tomaram conta do navio porque nós permitimos, vamos permitindo. Há maneiras piores de um país apodrecer.

26/11/12

O cinema não é real

Não é a realidade do postal turístico, mas isso já se sabia. Winter's Bone, um belíssimo western ambientado nos nossos tempos, é filmed on location nas montanhas Ozark, entre o Missouri e o Arkansas. É um poema opressivo, duro; cinzento como os corações das personagens que o habitam. As imagens que Debra Granik escolhe, a paisagem por onde a câmara passa, é desolada como as almas das personagens, bosques densos, fotografados em tons cinza, negro, castanho escuro. Chove, há mais noite que dia, a ameaça segue no encalço.
Pesquisando no google, outras paisagens. Claras, luminosos castanhos e resplandecentes vermelhos, correntes de água límpida - o contrário do rio turvo onde os ossos que dão ao título ao filme repousam. Um filme vive dentro do coração do autor. Por vezes, o espectador consegue tocar, à distância, o sangue, os nervos, o amor. A realidade, essa, é uma forma de ficção a que nos submetemos, passivos e derrotados, porque nada mais nos resta.

16/07/12

Cães

Os livros fazem-nos companhia; mas não são cães. Não precisam de ser levados a passear, não arruinam mobília, não são leais. Não são leais, e ainda bem. Deixam de gostar de quem os lê no momento em que o interesse de quem lê desvanece. Exigem fidelidade enquanto dura o modo amoroso, mas conseguem ser tão cruéis como uma entendiada Bovary. Se os precisamos de levar para férias, pesam muito mas dão menos trabalho do que um cão. E podemos fazer com eles analogias animais, deus nos perdoe. Quando são bons, são muito bons, e se apenas conseguimos amar moderamente um livro é porque não sabemos entregar o coração ao livro que o merece.
A auto-comiseração serve-nos quase tão bem como o fétiche dos livros. Mas estes salvam-nos, nem que seja provisoriamente; a auto-comiseração, não. E escrever sobre o fétiche, ainda menos. 

06/07/12

O deus dos pormenores

Às vezes apetece dizer: dias estranhos, estes. A histeria mediática à volta de uma partícula elementar, o Bosão de Higgs, mostra que este mundo - o nosso, ocidental e tudo - tem saudades do deus morto há quase cento e cinquenta anos. Durante alguns dias, o que é ciência, conhecimento puro, transformou-se numa espécia de papa esotérica com emanações místicas e arroubos teológicos. Sabendo que a God's particle era para se chamar a goddam particle e apenas por conveniência moralista de um editor de uma revista científica surgiu a maldita expressão, percebemos como andamos perdidos. Todos. Menos os cientistas que, fechados nos seus laboratórios procurando a comprovação das suas hipóteses, sabem que o furor do leigo perante a ciência tem a mesma raiz que o extâse místico do seguidor de uma qualquer seita. Prostrados ao altar do desconhecido, procuramos deus na matéria de que somos feitos. Felizmente, este furor é passageiro. E o que realmente interessa, o esforço do cientista, persiste independente do mundo. Até o próximo Bosão reaparecer de forma intermitente nos instrumentos de medição da Natureza, o descanso. Cinco dias, já passaram?

17/06/12

Escolha

No caderno de notas, um número e uma morada. A citação errada. E temos de voltar àquela casa. Não há outra escolha. Não há escolha.

01/06/12

O advérbio de modo

Um dos mais extraordinários feitos de Herberto Helder é a capacidade de manusear advérbios de modo delicadamente. Assim, maravilhosamente. O que em qualquer outro autor é uma densa barreira obrigando o leitor a saltar ou a uma volta mais demorada na leitura - palavras longas, longuíssimas, colocando-se a meio da frase, cortando o ritmo, mutilando o andamento da prosa ou do verso - em Herberto é uma catapulta. A sucessão de advérbios de modo empurra-nos para a dimensão oculta do poema, martelando no ouvido a força dos substantivos que precedem o complemento, reforçando o poder do verbo, hiperbolizando-o.
Mas talvez exagere, e o problema simplesmente seja ainda não ter conseguido perceber a poesia do poeta. Talvez. Tão simples.