15/10/24
Vanda
07/10/24
A nossa irmã mais nova
04/02/23
Memory is a slippery thing
03/02/23
Aftersun
Aftersun é um ensaio sobre a impressão que as pequenas percepções deixam na memória, e sobre o modo como no presente processamos o vestígio deixado por essas pequenas percepções. É mais instinto do que razão, mais intuição do que sentido. Reduzir o filme aos constrangimentos da infância é um erro: o filme mostra o olhar de uma mulher adulta declinando sobre as suas recordações o véu do entendimento da idade adulta. O olhar de alguém que tenta perceber por que razão lembra como lembra o que lembra. Mas pensar sobre o que lembra altera o que é lembrado - não é que o presente modifique o passado, é mais como se o presente moldasse o passado ao seu corpo, tornasse material o que nunca será mais do que espiritual. É um filme sobre a ilusão de conhecer e sobre a habilidade de construir uma história. O pai da criança é tanto uma sombra como a criança, e a mulher adulta que recorda a criança que passou é tão esboço como o pai e a criança. Na tela são projetadas sombras que revelam gestos, ruídos e pistas que apontam para um destino; mas no presente continuamos a não saber que destino foi esse. Tentar compreender uma memória é um gesto que tem tanto de vão como de fulgor criativo. Por isso funciona, e o filme atrai quem o vê para uma vertigem de sonho, um corpo leve fugindo na noite a caminho do mar.
14/04/21
Sem eira nem beira
Uma rapariga morta numa vala. Um corpo numa vala, coberto por uma manta, tinta no rosto gelado. Um trabalhador magrebino encontra a rapariga, a polícia é chamada, de quem é aquele corpo? Depois a voz de uma narradora fala-nos do que vai acontecer. Quem é a rapariga, a quem pertence o corpo morto, encontrado numa vala? A voz diz-nos que vai contar os últimos tempos de vida da anónima que morreu, e que por vezes pensa no que seria aquela rapariga quando era criança, o que fazia, quem a amava.
A voz é de Agnès Varda, realizadora de Sem Eira Nem Beira, e Agnès narradora entretanto diz quem era aquela rapariga. Um nome não é uma vida, não é uma identidade, é apenas o princípio de uma história: Mona, é o nome dela, diminutivo de Simone (uma coincidência, ou Simone de Beauvoir ao longe?), como a rapariga nos explica mais adiante, e já temos ali uma vida, e não uma rapariga morta, uma anónima numa vala. Não é ainda vida inteira, que essa irá ser contada por Agnès a seguir, com a sua câmara e as suas palavras, ditas pela voz de quem conheceu Mona ao longo dos últimos meses de vida. Uma vida desajustada, ao lado, a partir de uma escolha: abdicar do conforto de uma vida mais ou menos banal - iremos descobrir que Mona era secretária - para se lançar na liberdade. Ser livre, abraçar a estrada, acampar onde calha, na terra, dormir em ruínas, encontrar outros como ela, marginais por escolha ou porque foram empurrados para isso, viver. Escolher ser livre, como Sartre disse, é sempre a decisão mais difícil, mas a única que nos torna humanos. Um pastor que Mona encontra (mestre de filosofia que "regressou à terra") parece ser a voz de Sartre: liberdade com responsabilidade, não a liberdade absoluta de Mona, que leva ao desencontro, e à solidão absoluta.
Varda decide contar a história de Mona e dos seus marginais, figuras que, como é revelado nos filmes autobiográficos da cineasta, ela ama, porque se reconhece neles. Do mesmo modo que em Os Respigadores e a Respigadora ela conta a história da sua família espiritual e se filma enquanto respigadora de histórias, imagens e sensações, suspeita-se de um crime neste filme de marginais: o crime de esconder o quanto de Agnès há naquelas belas criaturas livres. Os que contam a histórias deles não os compreendem. Eles, ao contarem as suas histórias, estão tão perdidos como os outros. Eles falam com o espectador, para a câmara - actores profissionais mas também pessoas da região onde foram feitas as filmagens - contam a história tangente de Mona, e quanto mais vamos conhecendo aqueles momentos breves de passagem, de existências que se cruzam, menos a compreendemos com a razão. Mas mais a entendemos com o coração.
Amar um filme tem tudo ao início de instinto, de vísceras, o nosso corpo reage como um autómato vivo desprovido de entendimento. Depois tentamos compreender, e perdemos esse instinto, somos corpo pensado, ensaiado e feito de palavras. Sentir um filme é amá-lo, falar dele é traí-lo. Mas é fraqueza por vezes perdoável.
02/03/14
16/09/13
Uma história simples
07/09/13
Ozu
31/07/13
27/07/13
Jesse e Celine
O que mais impressiona no filme Antes do Anoitecer, que finalmente consegui digerir, é a sensação de transitoriedade das coisas; o definitivo é uma ideia que se perde do primeiro filme, a certeza dos acontecimentos também. O que diz este filme é que existe um tempo para entender que não há nada, nem ninguém, na vida, que responda absolutamente à questão fundamental: porquê? E isto será precisamente a passagem para a vida adulta. Posso falar em idealismo, mas não é bem isso. Celine e Jesse continuam, de certo modo, idealistas. Ainda esperam que a felicidade aconteça, e que aconteça através do amor. Mas o idealismo irrealista de Antes do Amanhecer foi substituído pelo romantismo desencantado do segundo filme. Há uma melancolia que se passeia por Paris, que os acompanha. É a melancolia da idade perdida, do tempo que passou e (infelizmente?) ficou. A conclusão a que se chega? Aos trinta, como só os trintões sabem, o sexo deixa de ser a concretização do amor para passar a ser um fim em si mesmo. Lugar-comum, é verdade, mas é assim a vida. Quando existe a percepção de que a pergunta fundamental nunca será respondida, o melhor será o abandono aos prazeres do quotidiano, ao mergulho irracional no mundo imediato dos sentidos. Desencanto, como referi antes? Não, apenas lucidez, realismo. - 30/11/2004
O título deste post tem uma razão de ser, que não cheguei a explicitar na primeira parte. Tem a ver com aquela ideia de que a vida não passa de um esboço, que nunca chega a ter uma versão final, e por isso tudo parece demasiado difuso, incontrolável, definitivamente inacabado. O díptico Antes do Amanhecer/Antes do Anoitecer transmite esta ideia de transitoriedade que não é auto-consciente, a sensação (e nunca passa disso mesmo) de que o que acontece nunca será nem controlado, nem completamente apreendido por nós. Os dois filmes são, portanto, esboços, ensaios para uma coisa maior, e sabemos que nunca irão passar desta fase; ao mesmo tempo, o díptico é um espelho da vida de Celine e Jesse, que por sua vez é um espelho da vida banal do eu indefinido que vai ver o filme. Qual o valor do sentido das coisas quando não existe uma compreensão total do peso dessas coisas? Esvaziar cada decisão reduzindo-a à sua insignificância, ou, como se diz em inglês, "Get Laid". - 02/12/2004