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15/10/24

Vanda

Ossos e No Quarto da Vanda, só por si, fazem de Pedro Costa um dos grandes realizadores contemporâneos. Depois há Juventude em Marcha, a obra-prima que conclui a sua "Trilogia das Fontaínhas". Aqui vemos Vanda Duarte, espectro que assombra Ventura, fantasma de um bairro desaparecido. O fantasma real que habitou antes o bairro, capturado pela câmara de Pedro Costa. Em modo divino.

07/10/24

A nossa irmã mais nova

Os filmes de Hirokazu Kore-Eda são fantasmas que nos guardam durante muito tempo. Assombrações de beleza e humanidade.

04/02/23

Memory is a slippery thing

"Memory is a slippery thing; details are hazy, fickle. The more you strain, the less you see. A memory of a memory endlessly corrupting itself. I’ve caught myself recently claiming that feeling is more robust, but it’s tricky. Because in recalling a point in time and how that moment made you feel, it is framed by a new feeling—the feeling of what that moment means to you now. In Turkish, a language rich in vocabulary not easily rendered into English, hasret means some combination of longing, love, and loss. It seems particularly appropriate in this context and to this film." - Charlotte Wells, realizadora de Aftersun. Encontrado aqui.

03/02/23

Aftersun

Aftersun é um ensaio sobre a impressão que as pequenas percepções deixam na memória, e sobre o modo como no presente processamos o vestígio deixado por essas pequenas percepções. É mais instinto do que razão, mais intuição do que sentido. Reduzir o filme aos constrangimentos da infância é um erro: o filme mostra o olhar de uma mulher adulta declinando sobre as suas recordações o véu do entendimento da idade adulta. O olhar de alguém que tenta perceber por que razão lembra como lembra o que lembra. Mas pensar sobre o que lembra altera o que é lembrado - não é que o presente modifique o passado, é mais como se o presente moldasse o passado ao seu corpo, tornasse material o que nunca será mais do que espiritual. É um filme sobre a ilusão de conhecer e sobre a habilidade de construir uma história. O pai da criança é tanto uma sombra como a criança, e a mulher adulta que recorda a criança que passou é tão esboço como o pai e a criança. Na tela são projetadas sombras que revelam gestos, ruídos e pistas que apontam para um destino; mas no presente continuamos a não saber que destino foi esse. Tentar compreender uma memória é um gesto que tem tanto de vão como de fulgor criativo. Por isso funciona, e o filme atrai quem o vê para uma vertigem de sonho, um corpo leve fugindo na noite a caminho do mar.

14/04/21

Sem eira nem beira

Uma rapariga morta numa vala. Um corpo numa vala, coberto por uma manta, tinta no rosto gelado. Um trabalhador magrebino encontra a rapariga, a polícia é chamada, de quem é aquele corpo? Depois a voz de uma narradora fala-nos do que vai acontecer. Quem é a rapariga, a quem pertence o corpo morto, encontrado numa vala? A voz diz-nos que vai contar os últimos tempos de vida da anónima que morreu, e que por vezes pensa no que seria aquela rapariga quando era criança, o que fazia, quem a amava.

A voz é de Agnès Varda, realizadora de Sem Eira Nem Beira, e Agnès narradora entretanto diz quem era aquela rapariga. Um nome não é uma vida, não é uma identidade, é apenas o princípio de uma história: Mona, é o nome dela, diminutivo de Simone (uma coincidência, ou Simone de Beauvoir ao longe?), como a rapariga nos explica mais adiante, e já temos ali uma vida, e não uma rapariga morta, uma anónima numa vala. Não é ainda vida inteira, que essa irá ser contada por Agnès a seguir, com a sua câmara e as suas palavras, ditas pela voz de quem conheceu Mona ao longo dos últimos meses de vida. Uma vida desajustada, ao lado, a partir de uma escolha: abdicar do conforto de uma vida mais ou menos banal - iremos descobrir que Mona era secretária - para se lançar na liberdade. Ser livre, abraçar a estrada, acampar onde calha, na terra, dormir em ruínas, encontrar outros como ela, marginais por escolha ou porque foram empurrados para isso, viver. Escolher ser livre, como Sartre disse, é sempre a decisão mais difícil, mas a única que nos torna humanos. Um pastor que Mona encontra (mestre de filosofia que "regressou à terra") parece ser a voz de Sartre: liberdade com responsabilidade, não a liberdade absoluta de Mona, que leva ao desencontro, e à solidão absoluta.

Varda decide contar a história de Mona e dos seus marginais, figuras que, como é revelado nos filmes autobiográficos da cineasta, ela ama, porque se reconhece neles. Do mesmo modo que em Os Respigadores e a Respigadora ela conta a história da sua família espiritual e se filma enquanto respigadora de histórias, imagens e sensações, suspeita-se de um crime neste filme de marginais: o crime de esconder o quanto de Agnès há naquelas belas criaturas livres. Os que contam a histórias deles não os compreendem. Eles, ao contarem as suas histórias, estão tão perdidos como os outros. Eles falam com o espectador, para a câmara - actores profissionais mas também pessoas da região onde foram feitas as filmagens - contam a história tangente de Mona, e quanto mais vamos conhecendo aqueles momentos breves de passagem, de existências que se cruzam, menos a compreendemos com a razão. Mas mais a entendemos com o coração. 

Amar um filme tem tudo ao início de instinto, de vísceras, o nosso corpo reage como um autómato vivo desprovido de entendimento. Depois tentamos compreender, e perdemos esse instinto, somos corpo pensado, ensaiado e feito de palavras. Sentir um filme é amá-lo, falar dele é traí-lo. Mas é fraqueza por vezes perdoável. 

16/09/13

Uma história simples

Uma História Simples revela-se, com o tempo, o meu filme preferido de David Lynch. Será aquele em que o realizador decidiu iludir a mão que guia a sua obra e deixar a câmara apanhar um pouco da vida americana, tal como ela é.
Há marcas, sinais de reconhecimento, nesta história de um homem que decide fazer 510 quilómetros através de dois estados do Midwest americano - a paisagem de americana - para visitar o irmão desavindo que está às portas da morte, montado num cortador de relva. O modo como Lynch vai apresentando as figuras que se vão atravessando no caminho de Alvin Straight condensa o mesmo espanto sobre as peculiaridades do Homem comum, do americano vivendo nas pequenas cidades do interior, que existe em Twin Peaks ou Veludo Azul. No entanto, Lynch suspende por momentos o seu olhar voyeurista e sente verdadeira empatia por aquela gente simples. É como se durante o tempo que dura o filme Lunch fizesse aquela viagem com Alvin, ao lado dele e não em panorâmica sobre o tractor viajando a 10 à hora. A estranheza lynchiana aparece a espaços, nos curtíssimos planos entre cenas mostrando chaminés de fábricas abandonadas ou nas intrusões da música de Badalamenti, quando a normalidade do dia a dia do americano médio se torna subitamente estranha. Sobretudo quando Alvin acampa ao largo de um cemitério, a morte em fundo de conversa com um padre, e naquele momento os três tempos coincidem: o passado de Alvin - a matéria de que é feito o seu presente -, o presente contínuo, real a partir do momento em que há um objectivo que o conduz, uma imagem de futuro; e o futuro em si, em fundo e personificado pelo padre. 
Alvin é um fantasma atravessando o interior da América. Um fantasma vindo de um passado remoto e comum a tantos outros, contando histórias de guerra que mudam para sempre um homem. Mas é também um fantasma de um género, o road movie. Em câmara lenta, a caminho de uma redenção final, responde quando lhe perguntam o que fez durante a vida: "andei por todo o lado". Pouco é dito, porque o passado apenas interessa ao presente na medida em que possa ser o cimento de uma identidade. Poderia ser um motoqueiro de Easy Rider, ou um dos noivos sangrentos de Badlands - e que Sissy Spacek apareça também no filme de Lynch não pode ser coincidência, assim como não o são os planos filmados à hora mágica de Malick. 
A um homem, depois de certa idade, tudo pode ser perdoado. Filmar a vida de Alvin Straight com uma tal doçura e pudor é de mestre. A bizarria parece não entrar neste filme. O silêncio entrecortado pelo motor de um corta-relvas. Haverá algo mais bizarro do que a própria realidade?

07/09/13

Ozu

Dois filmes de Ozu a estrear nas salas de cinema. Restaurados digitalmente. Vão passar discretos, por aí, no meio do ruído cinematográfico, sem ninguém dar por eles. De certa forma, ainda bem.

27/07/13

Jesse e Celine

Ainda sobre os filmes de Linklater, fica aqui o que escrevi sobre Antes do Anoitecer, no meu antigo blogue. Interessante descobrir que o que me interessou na altura foi menos o filme - em termos formais e temáticos - e mais o que me levou a pensar, onde conduziu o meu pensamento. Por ordem cronológica:

O que mais impressiona no filme Antes do Anoitecer, que finalmente consegui digerir, é a sensação de transitoriedade das coisas; o definitivo é uma ideia que se perde do primeiro filme, a certeza dos acontecimentos também. O que diz este filme é que existe um tempo para entender que não há nada, nem ninguém, na vida, que responda absolutamente à questão fundamental: porquê? E isto será precisamente a passagem para a vida adulta. Posso falar em idealismo, mas não é bem isso. Celine e Jesse continuam, de certo modo, idealistas. Ainda esperam que a felicidade aconteça, e que aconteça através do amor. Mas o idealismo irrealista de Antes do Amanhecer foi substituído pelo romantismo desencantado do segundo filme. Há uma melancolia que se passeia por Paris, que os acompanha. É a melancolia da idade perdida, do tempo que passou e (infelizmente?) ficou. A conclusão a que se chega? Aos trinta, como só os trintões sabem, o sexo deixa de ser a concretização do amor para passar a ser um fim em si mesmo. Lugar-comum, é verdade, mas é assim a vida. Quando existe a percepção de que a pergunta fundamental nunca será respondida, o melhor será o abandono aos prazeres do quotidiano, ao mergulho irracional no mundo imediato dos sentidos. Desencanto, como referi antes? Não, apenas lucidez, realismo. - 30/11/2004
O título deste post tem uma razão de ser, que não cheguei a explicitar na primeira parte. Tem a ver com aquela ideia de que a vida não passa de um esboço, que nunca chega a ter uma versão final, e por isso tudo parece demasiado difuso, incontrolável, definitivamente inacabado. O díptico Antes do Amanhecer/Antes do Anoitecer transmite esta ideia de transitoriedade que não é auto-consciente, a sensação (e nunca passa disso mesmo) de que o que acontece nunca será nem controlado, nem completamente apreendido por nós. Os dois filmes são, portanto, esboços, ensaios para uma coisa maior, e sabemos que nunca irão passar desta fase; ao mesmo tempo, o díptico é um espelho da vida de Celine e Jesse, que por sua vez é um espelho da vida banal do eu indefinido que vai ver o filme. Qual o valor do sentido das coisas quando não existe uma compreensão total do peso dessas coisas? Esvaziar cada decisão reduzindo-a à sua insignificância, ou, como se diz em inglês, "Get Laid". - 02/12/2004

26/07/13

Sob o signo de Rossellini

A trilogia Jesse/Celine, de Richard Linklater, é por várias razões, mais emotivas do que racionais, mais sentimentais do que cinematográficas, muito cá de casa. Sobre o terceiro tomo de trilogia, este texto do Daniel Curval é dos melhores que já li sobre o filme. Talvez acrescentasse uma referência à evocação que Linklater faz de um outro filme sobre um casal viajando pela crua luz de um país mediterrânico: Viagem a Itália, de Rossellini. Desde a sequência quase inicial - a longa conversa no carro, filmada do mesmo ponto de vista que Rossellini escolhe - até à explicitação clara durante a sequência da conversa entre ruínas, encenação pós-moderna do desencontro em Pompeia entre Ingrid Bergman e George Sanders, Antes da Meia-Noite é marcado por essa melancólica reflexão sobre o amor e a distância que o tempo cava entre os amantes. A metáfora das ruínas marca todo o dia de Jesse e Celine, juntos ainda apesar do amor domesticado, do tempo que esvaziou todo o romantismo dos dois primeiros filmes. Se Antes do Amanhecer era um Casablanca em tempos de inter-rail, Antes do Anoitecer será o remake que não chegou a acontecer do filme de Michael Curtis. Antes da Meia-noite recorda a outra Ingrid Bergman, a que fugiu de Hollywood e viveu uma cinematográfica história de amor com Roberto Rossellini. Mais cinéfilo, mais desencantado, mais realista, o terceiro filme da trilogia é bem capaz de ser o melhor. Mas o romantismo, esse, desapareceu.   

11/03/13

Ozu

Não sei onde terei lido que Ozu era o cinema. Se alguém o disse, consegue-se perceber porquê; nele, as imagens são a verdadeira história que está a ser contada. O que não sabemos, o que as personagens não dizem, vive nas imagens. Ozu é o cinema, no sentido em que o cinema é arte das imagens e do tempo que nelas se representa, e talvez não seja acaso que fosse japonês; o que está oculto é sempre mais importante do que aquilo que é revelado. No meio da paisagem saberemos encontrar o que se disfarça - como o comboio emergindo da floresta, em Bakushû. 

04/02/13

Django Libertado

A questão, em Django Libertado, não é a escravatura. Nem a raça, a negritude da América. Nesse aspecto, Spike Lee, uma vez mais, atira completamente ao lado (como aliás já tinha sucedido com Clint Eastwood quando estreou Flags of Our Fathers/Letters From Iwo Jima). Ninguém de bom senso esperaria que Tarantino fizesse um filme empenhado politicamente, um ostensivo manifesto - como é grande parte da obra de Spike Lee, de resto. Se Tarantino tivesse decidido fazer isso, das duas uma: ou falharia redondamente ou deixaria de ser Tarantino. 
Claro, há aquele pequeno pormenor: Tarantino é branco - tem ascendência índia e italiana, mas é branco. O seu olhar, se está vertido em alguma personagem, não é em Django, mas sim em King Schultz. O ariano versado em várias línguas, culto, refinado e um glorioso sacana à procura de poster boys (pun intended) no faroeste americano. A política está no gesto de libertação ensaiado por Schultz. É ele quem oferece a liberdade a Django, é ele que o estimula a embarcar na matança para libertar a sua mulher, é ele o herói que mata Calvin Candy, num gesto de aparente raiva, no fundo um atentado verdadeiramente político que elimina quem encarna o espírito do racista esclavagista, do opressor. 
Portanto, regressamos à crítica de Spike Lee: fazer um filme sobre a escravatura em tom de western-spaghetti? O horror, o sacrilégio? Não, porque há mais política do que as imagens aparentam, e não onde se esperaria que ela assomasse. Django é libertado, torna-se fora-da-lei, mas ficaremos sempre na dúvida se chega a sentir a raiva - profundamente política - que o Dr. Schultz não consegue conter. À superfície, o mesmo brilhantismo de sempre: a canibalização de géneros, a auto-citação, a estilização da violência, os diálogos intocáveis - se bem que, neste caso, menos trabalhados. Na profundidade, um ensaio iconoclasta e politicamente incorrecto sobre as lutas dos afro-americanos. E uma extraordinária qualidade, a desconstrução de dois mitos do cinema americano: O Nascimento de Uma Nação em versão Mel Brooks numa sequência genial que esvazia por momentos a gravidade da história que está a ser contada. E a evocação de E Tudo o Vento Levou: em vez de Rhet e Scarlett, Django e a sua Broomhilda. Genial Tarantino, talvez o seu melhor filme.

16/01/13

Argo

Ben Affleck confirma ao terceiro filme ser mais realizador do que actor. Argo não é uma obra-prima, mas há cinema por ali, e sobretudo alguma bastante louvável cinefilia. Não só pela evocação de Hollywood a que a história obriga, mas também pelas citações que Affleck faz, a filiação no lado luminoso da força. Cinema político dos anos 70, na linha das experiências na realização do amigo George Clooney, mas filmado com mais nervo e certeza do que este, revelados sobretudo no domínio do suspense - a sequência final, suportada por uma montagem paralela tão nervosa quanto precisa, é exemplar, mesmo se às custas de alguma verosimilhança. E há ali qualquer coisa que poderá levar a que os próximos esforços sejam ainda mais efectivos. Clint Eastwood é único, mas há histórias que se podem repetir.

26/12/12

Trouble with the curve

Como seria de esperar, não consegui ficar muito tempo zangado com Clint Eastwood. O "problemazinho" com a cadeira vazia no congresso Republicano foi resolvido de forma plenamente satisfatória. Como actor, personagem, persona, pessoa que se repete de filme para filme, o rezingão de quem não se pode deixar de gostar. Não é preciso estar atrás da câmara para fazer um Eastwood movie. Clint é Clint.