Conheço mal a história e a música de Pete Seeger. E estranhamente o que me trouxe a ele é uma daquelas lendas apócrifas que polvilham a história da música popular. A sua reacção ao concerto electrificado de Bob Dylan no festival de folk de Newport é mítica: furioso pela atitude rebelde do seu discípulo, Seeger terá pensado em cortar os fios dos amplificadores que alimentavam a guitarra de Dylan com um machado, porque não conseguia entender as palavras cantadas por baixo de toda a distorção eléctrica. No momento em que acontecia um ponto de cisão na carreira daquele que será o maior génio da folk, Seeger terá escolhido o conservadorismo, manter-se fiel à pureza do som acústico da folk. O cantor progressista, o activista socialista, não gostou da mudança na música e na atitude de Dylan. Acabaria mais tarde por reconhecer que se enganara, considerando que algumas das melhores canções de Dylan são eléctricas.
E para lá das histórias e do combate, há a música.
Como aconteceu com quase todas as bandas que lançaram álbuns marcantes antes dos anos 90, cheguei aos Velvet Underground através de referências de músicos que admiravam essas bandas e que faziam parte do meu esquema das coisas. Quem me ensinou a gostar dos Velvet Underground foram os Nirvana. Passava na XFM uma cover de "Here She Comes Now", do álbum "White Light/White Heat", incluída num álbum de homenagem aos Velvet, "Heaven and Hell", o 1.º volume de uma série lançada em 1991. Acabei por comprar este álbum (mas agora não sei por onde anda) e ouvi incessantemente as músicas tocadas por bandas como os Ride, Chapterhouse ou Screaming Trees. Pouco tempo depois, comprei "Velvet Underground & Nico" e "Transformer", incluídos num top de melhores álbuns de sempre da XFM.
A cover dos Nirvana, sendo mais pesada do que o original, mostrava o que os Velvet têm de melhor: as melodias urbanas cobertas por camadas de ruído, de feedback, até à saturação. As letras de Lou Reed completavam o efeito, criando uma atmosfera que, na minha imaginação, representa a Nova Iorque de Andy Warhol, entre o excesso e a depressão, um negrume distante do flower power e do psicadelismo, da pop colorida que parte do mundo ouvia na altura. Os álbuns europeus de Lou Reed foram, de certo modo, a mesma descoberta das cidades e de um submundo frequentado por prostitutas, chulos e traficantes - o brilhantismo das letras de Reed passa por uma atenção ao pormenor que transforma cada canção numa pequena história de fracasso, perda ou melancólica euforia -, uma descoberta partilhada durante algum tempo com David Bowie, também ele perdido (ou reencontrando-se) na Europa de onde tinha saído a determinada altura da sua carreira.
Nunca tendo visitado Nova Iorque, sei bem que não a encontrarei como era nos anos 60, quando Lou Reed e John Cale, Bob Dylan e Andy Warhol, por lá inventavam o futuro da música. E se Dylan sempre se equilibrou entre o pretensiosismo dos artistas nova-iorquinos e um certo pendor evangélico de raiz rural, Lou Reed nunca saiu de Nova Iorque, mesmo quando andou pela Europa. Entre o minimalismo das guitarras noise - sim, milhares de bandas construíram carreiras à sombra dos caminhos desbravados pelos Velvet - e a poesia das ruas, Lou Reed foi provando que, com recursos mínimos (vocais, técnicos), se podem escrever grandes canções. É esse, no fundo, o espírito da música pop. Mesmo quando o abismo espreita em cada verso.
"O país trabalha em ordem, vós os dizeis e os políticos vossos servos muares. O país trabalha em paz, vós mo dizeis desde a cabeça do poder até à última prostituta e limpa-retretes. Também as formigas trabalham porque a natureza as fez estúpidas para isso. Também a besta anda à nora e com os olhos vendados para não ver que anda e ter acaso uma hipótese negativa na sua capacidade de besta. Também o burro puxa à carroça e leva pancada se faz greve de zelo, porque não calcula que é ele o sujeito desse puxar. Assim não é possível chegar a uma formiga e dizer-lhe pára um pouco e pergunta-te que diabo ando eu aqui a fazer?"
Vergilio Ferreira entra em território desconhecido quando os seus narradores - ou alguma personagem - começam a falar de política, explicita ou alegoricamente. É uma marca que se repete em vários dos seus romances - e se em Portugal existissem editores à maneira anglo-saxónica, essas longas diatribes, entre o moralismo e a indignação bacoca, seriam cortadas sem apelo nem agravo. Isto sou eu quem diz. Eu, que em Saramago também não gosto dos narradores intrusivos e que têm opinião sobre questões de política, os narradores sentenciosos e demasiado próximos da própria personagem saramaguiana. Sei que pensando isto nego parte da arte da ficção tal como Saramago a entendia; várias vezes ele afirmou que o narrador se confundia com o autor, ou pior, que o narrador (nas suas narrativas na terceira pessoa) nunca deixa de ser o autor. Mas o que mais me fascina em Saramago é o domínio do tempo e do ritmo das histórias contadas e a destreza linguística. E os defeitos que lhe encontro não esvaziam este fascínio.
Mas voltando a Vergílio. Será este talvez o terceiro verão em que regresso a ele. Agora, Em Nome da Terra, do qual retirei a passagem acima. A política entra na minha vida sem pedir licença, e mesmo quando me afasto ela me persegue, nem que seja através da voz da personagem de um romance. Tudo é política, ainda hoje eu dizia - os aspectos mais banais do nosso quotidiano dependem de decisões tomadas por outros, decisões que não conseguimos controlar. Não sei se somos formigas ou bestas, "com os olhos vendados para não ver", mas sei que facilmente caímos nessa dócil escravatura que nos obriga a percorrer o carreiro das formigas de Zeca Afonso. Vivemos um tempo em que se é cada vez mais difícil seguir em sentido contrário. Quando a herança de Zeca (e de Saramago, e até de Vergílio Ferreira) é assim traída, o que nos resta?
Música com punch massacrante, bateria a rasgar e um baixo denso e pujante, guitarra ácida. Melodias sacadas aos Beatles. Os Queen of the Stone Age são os herdeiros pop dos Kyuss, a primeira banda de Josh Homme. Parentes afastados do grunge mais pesado, via Mark Lannegan, o líder dos Screaming Trees, uma das bandas citadas por Kurt Cobain, e via Dave Grohl, baterista no álbum Songs for the Deaf. Há quem prefira Rated R, e eu percebo: é um álbum mais equilibrado e mais descontrolado, com adrenalina, anfetamina e coca à mistura. Mas "Songs" tem as duas melhores músicas dos QOTSA: Go with the flow e No one knows. Canções cumprindo o cânone pop dos três, quatro minutos, variações de ritmo fantásticas, o imediatismo de um refrão matraqueado até não sair da cabeça. Precisamos de exorcizar a calma com que estamos a encarar esta merda de país, esta merda de capitalismo. Precisamos de violência. Pode começar na música? Não sei, mas tem de começar por algum lado.
Virginia Astley, From Gardens Where We feel Secure. É o único álbum em casa. Piano, flauta, oboé e sons da natureza. Coros virginais. O chiar de um baloiço. Balir de ovelhas. Música melancólica para dias cinzentos, não tão perto do new age que não justifique o incondicional amor.
Os sons recriam imagens, ligações do inconsciente. O filme de Peter Weir, Piquenique em Hanging Rock. As meninas do colégio privado que se perdem na Natureza. Sinos na distância, a chamada para a missa de Domingo. A igreja de infância? Não, essa era clara, caiada, plena de Verão; arraial com foguetes e alegria. Igrejas inglesas, perdidas na neblina. Os Cinco no campo inglês. Os contos de Arthur Conan Doyle, especialmente o Cão dos Baskervilles - english marshes. A outra Virginia, a de As Ondas. As caminhadas de Sebald no meio de ruínas. A perda e o esquecimento. A recuperação da memória, emergir do passado. Um pulmão de aço. Como na música dos Radiohead. Ordem no caos.
Passam hoje dez anos desde que partiu para outras paragens aquele que é considerado, pelas melhores famílias, o mais genial Beatle. Não sei, ninguém pode saber, e pouco importa. All in all, é tudo um sonho. Apenas a maravilhosa claridade da guitarra de George Harrison é real. E eterna.
One pill makes you larger
And one pill makes you small
And the ones that mother gives you
Don't do anything at all
Go ask Alice
When she's ten feet tall
And if you go chasing rabbits
And you know you're going to fall
Tell 'em a hookah smoking caterpillar
Has given you the call
Call Alice
When she was just small
When men on the chessboard
Get up and tell you where to go
And you've just had some kind of mushroom
And your mind is moving slow
Go ask Alice
I think she'll know
When logic and proportion
Have fallen sloppy dead
And the White Knight is talking backwards
And the Red Queen's "off with her head!"
Remember what the dormouse said;
"Keep your head"
O rock português tem vivido nos últimos anos um fulgor que ultrapassa, de certo modo, o dos anos 80, considerada a década de ouro do género em Portugal. Das bandas da editora Flor Caveira e Amor Fúria a projectos que reúnem músicos que vêm da década de 90, tem havido muito por onde escolher; e ouvir. É verdade que na maior parte dos casos, o som está demasiado colado às influências, mas há alguns projectos que têm conseguido ser minimamente criativos, afastando-se do modelo original quanto baste.
Mas a música também é também corrente de influências, e um dos maiores prazeres de um melómano (estamos a falar de pop/rock, mas usemos o pretensioso termo) é descobrir acordes antigos em novas músicas, melodias de bandas de que gostamos numa canção de um novo projecto. Os Trêsporcento conseguem ser um objecto musical que cruza as duas particularidades - a criatividade e o gosto por referências acima de qualquer suspeita - de modo significativamente estimulante. Este é a primeira música deles a rodar intensamente nas rádios, graças à Antena 3, e é retirada do álbum "Hora Extraordinária". É excelente.
(Devo evidenciar que o facto do Lourenço Cordeiro, benfiquista dos sete costados, pertencer à banda, não me influenciou minimamente na escrita deste post.)
Como ser popular sem deixar de ser erudito? Como retratar a alma de uma cidade e dos seus habitantes, de todas as classes e proveniências, criando uma obra de arte que transcende de algum modo tudo o que foi feito antes? Como soar a Pogues nunca abandonando o caminho da epopeia de inspiração homérica? Uma viagem em circuito fechado, urbana, que tem a respiração de uma longa jornada de regresso de casa, marítima.